Quanto mais vívidas as imagens de uma tragédia na memória do espectador, maior costuma ser o impacto emocional das obras que a retratam.

No caso do novo coronavírus, a indústria do entretenimento nem esperou a pandemia passar e virar uma lembrança ruim. Enquanto a crise sanitária mundial ainda domina os noticiários, já são desenvolvidos projetos de tevê e de filmes que exploram o impacto da Covid-19 do ponto de vista dramático.

Pelo menos duas séries de TV, de gigantes como a Disney e a Netflix, são realizadas remotamente no momento. Com todos os roteiristas, diretores e o elenco a distância, são os atores que capturam as imagens de si mesmos.

De olhos nos tempos estranhos impostos pelo vírus, as tramas vão abordar desde as novas regras, como a de distanciamento social, até os efeitos da pandemia nos relacionamentos amorosos.

Para a Netflix, a produtora Jenji Kohan, criadora de Orange Is the New Black, desenvolve Social Distancing. Como o título já adianta, a série é uma antologia sobre a experiência de viver na época do distanciamento social.

“Apresentando um amplo espectro de contos e momentos, alguns desastrosos e outros mundanos, esperamos capturar um momento no tempo. E esperamos que o distanciamento social ajude as pessoas a se sentirem próximas”, diz o comunicado da Netflix, publicado nas redes sociais, lembrando que o trabalho dos contadores de histórias é “refletir a realidade”.

A minissérie Love in the Time of Corona, de quatro episódios, já tem data de estreia no Freeform, canal a cabo da Disney: em agosto. Com produção de Joanna Johnson, de Good Trouble, o público vai acompanhar as aventuras amorosas de quem está preso em casa, incluindo romances casuais com colegas de quarto ou confinamentos inconvenientes com um ex.

A minissérie Love in the Time of Corona, de quatro episódios, já tem data de estreia no Freeform, canal a cabo da Disney: em agosto

A ideia é mostrar como a nova geração tenta encontrar amor e sexo sob o atual mantra dos cientistas, pedindo que uns fiquem longes dos outros. Resta saber se os espectadores terão vontade assistir ao mesmo drama que eles estão vivendo 24 horas por dia.

“Hollywood demorou bastante tempo para lidar com os ataques terroristas de 11 de setembro”, afirma Annette Insdorf, historiadora de cinema e professora da Escola de Cinema da Universidade de Columbia, em Nova York.

Ela lembrou que “A Hora Mais Escura”, thriller dirigido por que Kathryn Bigelow, que concorreu ao Oscar de melhor filme, só foi lançado em 2012. Naquele caso, talvez pelos americanos terem sido as vítimas, a indústria do cinema realmente não teve pressa, como se o silêncio fosse a resposta mais patriótica durante um longo período.

Um dos primeiros títulos a tocar na ferida, segundo Annette, foi o telefilme “Crimes Premeditados”, que chegou à programação da HBO em 2004. “Até hoje a obra se mantém como uma brilhante experiência cinematográfica de confronto com o terrorismo”, diz, referindo-se ao drama assinado por Sidney Lumet, que contrapôs a segurança nacional e a liberdade individual.

O mundo certamente era outro quando o World Trade Center, em Nova York, veio abaixo em 2001. Com as mudanças tecnológicas e de distribuição de conteúdo ocorridas nos últimos 20 anos, era de se esperar que o “timing” fosse outro para uma tragédia virar um produto audiovisual.

Com as mudanças tecnológicas ocorridas nos últimos 20 anos, era de se esperar que o “timing” fosse outro para uma tragédia virar um produto audiovisual

Até porque os filmes e as séries chegam mais rápido ao público, graças à explosão dos serviços de streaming, o que também deixou a concorrência mais acirrada em toda indústria do entretenimento. E a sociedade não vive mais sem Facebook, Twitter ou WhatsApp.

“O imediatismo das mídias sociais e a nossa capacidade de manter a atenção cada vez menor obrigam os produtores a responderem mais rápido do que no passado”, afirma Harry Cheney, professor da Dodge College of Film and Media Arts, da Califórnia.

O público ficaria surpreso, segundo ele, se soubesse o quanto da agenda de Hollywood é hoje determinada pelas redes sociais. “Mesmo as produções de longa gestação são afetadas, em qualquer momento do processo, pelo que é dito nas redes”, diz Cheney.

As redes sociais podem até contribuir com a produção em si. Petra Costa, a cineasta brasileira que disputou este ano o Oscar com o documentário “Democracia em Vertigem”, recruta colaboradores pelo Facebook para o seu novo projeto.

Em sua página, ela apresenta “Dystopia”, concebido para documentar “esse momento urgente, no qual a pandemia da Covid-19 escancara nossos mais profundos problemas estruturais e a desigualdade que define nossa sociedade”.

A diretora pede que o internauta registre o que vê, sente e vive com a sua família em sua cidade, mandando o vídeo por e-mail ou chat. “Queremos fazer um mosaico com diferentes visões de Brasil, para tentar fazer sentido dessa pandemia/pandemônio”, escreveu ela.

Dar continuidade à produção do reality show “90 Dias para Casar”, no oportuno “spin-off” Self-Quarantined, no canal TLC, também só foi possível graças aos tempos modernos.

“Tivemos que aprender a usar nossos celulares para gravar vídeos com qualidade. Filmei do momento em que acordei até a hora de dormir e enviei todo o material ao estúdio, para que eles editassem como quisessem”, conta uma das participantes, a empresária Molly Hopkins. “É hora de rir um pouco e de encontrar amor, se for possível”, completa ela, demonstrando interesse pela série Love in the Time of Corona.

Para Emily Carman, doutora em Cinema e em Estudos de Mídia pela UCLA, de Los Angeles, talvez a série com viés romântico dê certo. Principalmente se enveredar pelo humor.

“A maneira como Charles Chaplin respondeu à Segunda Guerra Mundial foi com a sátira ‘O Grande Ditador’ (1940). Na época, ele teria dito que a comédia era a única maneira de lidar com o que acontecia. Como não rir de Hitler?, perguntava ele.”

Ainda é cedo para brincar com a Covid-19, na visão de Barbara Gasser, que integra a Associação dos Correspondentes Estrangeiros de Los Angeles, a entidade que concede anualmente o Globo de Ouro aos melhores do cinema e da TV.

“Com o número de mortos aumentando todos os dias e sem uma vacina disponível, não vejo como um filme ou uma série pode fazer piada com a pandemia”, afirma Barbara.

O professor Harry Cheney considera muito pior quando Hollywood revisita nas telas tragédias como tiroteios em escolas. “Por serem episódios horríveis e mais pessoais, esses eventos acabam rendendo obras superficiais e ofensivas”, comenta ele.

Já criar narrativas para o novo coronavírus pode funcionar. “Por todo o absurdo que ele criou. Não só por ter afetado literalmente todo mundo, mas pelas situações inusitadas que nos obriga a viver, das mais loucas, engraçadas, trágicas e até heroicas”, diz.

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