Nascido e criado na Cidade Líder, bairro da zona leste de São Paulo, Fernando Teles sentiu na pele um problema que assola muitos brasileiros nas periferias de todo o País. Hoje com 36 anos, ele morou em cortiços e, em mais de uma oportunidade, quase viu sua casa ser levada pela força das chuvas.

Essa trajetória serviu de inspiração para que ele fundasse, em 2014, a Ecolar. A startup constrói casas ecológicas de baixo custo, com o uso de madeiras e plásticos reciclados, impermeáveis e que não propagam fogo ou geram bolor. O modelo chega a ser 70% mais barato que as construções convencionais, além de mais rápido. Em média, as obras são finalizadas em quatro dias.

“Mesmo com essa proposta, as casas ainda são caras para a realidade brasileira”, diz Teles, que já construiu mais de 30 habitações, de 20, 30 e 40 metros quadrados. Os preços variam entre R$ 14,5 mil e R$ 28 mil. “Nosso foco são as famílias que vivem com R$ 400, R$ 500 por mês.”

Para colocar, literalmente, esses projetos em pé, a Ecolar recorreu à iniciativa privada. Todas as casas foram financiadas por empresas como Salesforce e Hilti. Magazine Luiza e Votorantim são outras companhias que também têm planos para aderir a esse modelo.

Assim como a Ecolar, outras startups estão desenvolvendo soluções que vão ao encontro da falta de moradia ou das condições precárias de habitação. Com propostas para facilitar o financiamento e agilizar as obras, essas novatas começam a ganhar fôlego a partir do apoio de grandes companhias.

Uma série de números justifica esse movimento. De acordo com a FGV, o Brasil tem um déficit de 7,75 milhões de residências. Segundo o IBGE, 16,7 milhões de brasileiros vivem em moradias inadequadas, sendo que 91% dessas casas pertencem a famílias com renda mensal de até três salários mínimos.

“As empresas socialmente justas e ambientalmente responsáveis são o caminho para transformar esse cenário”, afirmou Marcos Bicudo, CEO da Vedacit, durante o “Sustainable Brands”, evento realizado no início do mês de novembro, em São Paulo.

Gerente de inovação e sustentabilidade do Grupo Tigre, Rafael Salomão engrossa esse coro. “Há muitas iniciativas que estão gerando impacto em suas comunidades e que, somadas, têm um amplo alcance”, diz. “Nós não estamos na ponta, mas nosso papel, como indústria, é ser o motor desse ambiente.”

Ecossistema em construção

Vedacit e Tigre estão entre as apoiadoras do Lab Habitação, criado em parceria pela Gerdau e a Artemísia, uma aceleradora que investe em projetos de impacto social. O projeto conta com um programa de aceleração para startups com soluções de habitação para a população de baixa renda. Em 2018, 15 novatas passaram por esse processo, que inclui mentorias e capital semente de R$ 10 mil, entre outros elementos.

“Como é uma questão muito complexa, resolvemos reunir atores da indústria para ajudar a impulsionar esse ecossistema”, diz Priscila Martins, gerente de relações institucionais da Artemísia. “A habitação é a casa de todas as causas. E não se trata apenas de quatro paredes, mas sim de todo o entorno e do seu impacto na vida das pessoas.”

Para o segundo ciclo, em andamento, foram mapeadas 490 startups. O escopo envolve desde a Alpop, de Campinas, que criou uma plataforma de locação de imóveis que elimina a necessidade de fiador e comprovação de renda, até a Terra Nova, de Curitiba, voltada à regularização de imóveis.

Boa parte dos projetos, no entanto, se concentra na reformas de imóveis. Esse é o caso da Digna Engenharia, fundada por Evelin Mello. Em 2017, recém-formada em engenharia civil, ela deu início à empresa no Jardim Morenão, bairro da periferia de Campo Grande (MS), no qual nasceu e foi criada.

Evelin Mello, fundadora da Digna Engenharia

“Eu nunca tinha visto um arquiteto ou engenheiro ali. E percebi que além de ajudar a mudar a essa realidade, esse poderia ser o meu ganha-pão”, afirma Evelin. Depois do teste com dois projetos, ela não parou mais. Em 2018, foram 25 reformas. A previsão é fechar esse ano com mais de 50 obras.

No modelo da Digna, quem tem condições de dar uma entrada de 50% pode dividir o valor restante em até 36 vezes no boleto ou no cartão de crédito. Caso o cliente não tenha a cifra necessária para um sinal, o custo é distribuído no número de parcelas que couber em seu orçamento.

Outros fatores ajudam a explicar a proposta da startup. Além de aplicativos que ajudam a reduzir os desperdícios na compra e no uso de materiais, a Digna tem acordos com fornecedores e lojistas para obter preços mais acessíveis e baratear o custo das obras. A Vedacit é uma dessas parceiras.

“O déficit qualitativo é muito maior que o quantitativo. Há muito mais gente morando mal do que sem casa”, diz Marcelo Coelho, CEO e cofundador da Vivenda, também dedicada a reformas e uma das pioneiras do setor, depois de ser acelerada, em 2012, pela Artemísia.

Com kits para banheiro, cozinha, área de serviço, sala e quarto, além de recursos como modelagem em 3D, a startup desenvolveu um modelo cujas obras duram, geralmente, seis dias e saem por um valor médio de R$ 7,5 mil.

Fundada em 2012, a empresa já reformou mais de 1,7 mil imóveis. A cada mês, cerca de 50 obras são executadas em toda a periferia da zona sul de São Paulo. A companhia conta com 80 funcionários fixos e outros 20 que trabalham de acordo com a demanda.

Marcelo Coelho (à esq.), Fernando Assad e Igiano Lima, fundadores da Vivenda

Além de dividir o pagamento em até 30 parcelas, a Vivenda investe em outros formatos para facilitar o acesso às reformas. Entre eles, o financiamento via organizações de filantropia e empresas parceiras, como a Loft, e até mesmo o crowdfunding. No momento, a companhia tem uma campanha na plataforma Benfeitoria, com o objetivo de arrecadar R$ 280 mil e beneficiar até 50 famílias.

A empresa também prepara a inauguração de uma loja de 400 metros quadrados no Jardim Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, que trará um show room com todos os seus kits de reforma. Outros espaços, nos mesmos moldes, estão no radar.

Para viabilizar esse projeto e a oferta de preços mais acessíveis nessas unidades, a Vivenda está costurando acordos com fornecedores como Gerdau, Tigre e Vedacit. A conexão com a indústria passa ainda pela participação no programa de aceleração Housing Pact, iniciativa semelhante ao Lab Habitação, que reúne companhias como Basf, InterCement, ArcelorMittal e Duratex.

Boa impressão

As propostas de startups para lidar com os desafios de habitação não estão restritas ao Brasil. E um dos principais exemplos no exterior é a Icon. Fundada em Austin, no Texas, a novata americana constrói casas populares feitas em uma impressora 3D.

A empresa já tem uma série de pedidos e projetos no radar, o que inclui mais de um milhão de moradias e até mesmo um bairro com 50 casas em uma zona predominantemente rural no México.

Depois de chamar a atenção da mídia, a Icon atraiu também investidores. Em outubro de 2018, a empresa captou US$ 9 milhões em uma rodada que contou com a participação da D.R. Horton, uma das principais construtoras americanas.

Casa "impressa" pela americana Icon

Ainda distantes de montantes de cifras desse porte, as startups brasileiras seguem buscando maneiras para beneficiarem as famílias e, ao mesmo tempo, viabilizarem seus modelos de negócios.

“Hoje, nosso maior desafio é a escala e a estruturação de uma cadeia, com mais startups e iniciativas de fomento”, diz Coelho, da Vivenda. “Esse ecossistema pode replicar modelos eficientes. E se trouxemos a indústria para olhar sob essa ótica, temos toda a chance de reverter essa história.”

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