O ano de 2020 ficou marcado na história pelas consequências trazidas com a pandemia da Covid-19. Um dos maiores desafios sanitários em escala global dos últimos tempos provocou efeitos no bem-estar, no modo de se relacionar, de estudar, de consumir e produzir, sendo necessário buscar alternativas para manter as atividades sociais e econômicas ativas.

A avaliação é de que o surto da doença introduziu ou impulsionou profundas mudanças na nossa vida pessoal, profissional e social. Com isso, o caminho da transformação digital na sociedade foi acelerado e fez com que diversas discussões acerca de como equilibrar e garantir direitos ganhassem destaque, principalmente em relação ao uso e à proteção dos dados pessoais.

São temas que abrangem desde as formas mais eficazes de implementar meios de pagamentos digitais e instantâneos, a elaboração de padrões éticos no uso da Inteligência Artificial, o desenvolvimento de algoritmos que não repliquem processos e tendências preconceituosas, a aplicação de regulamentações que ajudem a garantir o equilíbrio entre segurança e privacidade, até o planejamento e a visão estratégica baseadas na cibersegurança, tanto de empresas, quanto de governos e autoridades, a partir de princípios fundamentais como os da transparência e da não discriminação.

Outro aspecto de extrema relevância a ser analisado nessa nova realidade que estamos nos aproximando é o que fazer com os bens digitais, ou seja, com as heranças digitais. Conforme vem aumentando a importância dos ativos intelectuais, também crescem os desafios no tocante a sua proteção, justamente pelas alterações que mudaram a forma de gerenciar os meios de reprodução, de distribuição e de publicação, fazendo com que boa parte do nosso legado pertença ao ambiente online.

É uma temática que abrange desde a transferência patrimonial de bens digitais, que antes quando eram bens físicos e que iriam incorporar naturalmente à herança (como livros e discos que viraram e-books, músicas online, canais remunerados em mídias sociais, coleção de skins em jogos online), até debates sobre se deve ou não manter um perfil "pós-mortem" ou se ele deve ser encerrado pela família.

Se toda a sua rede de amigos está no Facebook, se seu networking está no LinkedIn, se todas as suas fotos estão no Instagram ou no Flickr, se todos os seus conteúdos estão no Dropbox, se todos os seus vídeos estão no Youtube ou no Snapchat, se todos os seus livros estão em algum serviço na nuvem do Android, da Apple ou da Amazon, se você investiu muito dinheiro em um avatar dentro de um game online, ou ainda que você venha a usar qualquer serviço que se venha a inventar no futuro, como fazer para transmitir este seu legado de patrimônio digital para seus herdeiros? Afinal, quando os bens eram corpóreos, havia a previsão legal da herança, mas e agora, com os bens incorpóreos, muitas vezes tratados pelos termos de uso como serviços, como fazer?

Mais que isso: muitos serviços se garantem pela inércia dos usuários ou pela retenção dos mesmos devido a uma barreia relacionada a migração (portabilidade) de todos os dados, todo o histórico. Será que se fosse mais fácil migrar todos os seus grupos para outro serviço, você continuaria a utilizar o WhatsApp, mesmo sabendo que Telegram e Signal são serviços que oferecem mais recursos de privacidade e segurança?

O avanço das leis para tratar do tema

Atualmente há diversos casos no Judiciário aguardando decisões sobre os dados digitais, com familiares querendo acesso a arquivos ou contas armazenadas na internet. Não à toa que quando a quando a sociedade muda, o Direito também deve evoluir e se transformar para abarcar as novas realidades e formas de organização estabelecidas.

A partir daí que nasce o Direito Digital. E com ele, toda uma série de iniciativas para atualizar a lei diante desses outros contextos. Como o importante PL 3.050/2020 de autoria do Senador Gilberto Abramo, que trata deste assunto, com a proposta de alterar o artigo 1.788 do Código Civil Brasileiro para a seguinte redação:

“Art.1.788: Parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de qualidade patrimonial contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.”

A ideia é que uma lei civil trate do tema, como medida de prevenção e pacificação de conflitos sociais. Como não há regra específica para esses casos, os herdeiros têm que entrar na Justiça para ter acesso a e-mails e contas em redes sociais de falecidos.

Afinal, mesmo com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) em vigor desde setembro de 2020, a regulamentação não trata especificamente sobre o que acontece com as informações digitais quando morremos. Assim, fica sob responsabilidade das empresas a decisão sobre o que fazer com a conta e os dados do perfil de alguém que faleceu. A exemplo do Facebook, que disponibiliza a opção de solicitar a remoção da conta ou então transformá-la em um memorial.

Outras propostas, atualmente arquivadas, já buscaram dar norte sobre o tema. Como o Projeto de Lei 4099/2012, que a partir da alteração do Código Civil (Lei 10.406/02) garantia aos herdeiros o acesso a contas e arquivos digitais de pessoas falecidas. Ou então o PL 4847/2012, que estabelecia normas a respeito da herança digital, como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual.

São iniciativas que refletem como a tecnologia trouxe novos comportamentos e condutas que precisam de orientação e regulamentação para estarem alinhados com os mesmos preceitos que já aprendemos, garantindo assim a segurança jurídica das relações.

Com os usuários produzindo e adquirindo bens digitais, surge a necessidade de estabelecer a quem pertence esse conteúdo intangível, com o valor patrimonial e a sucessão de bens armazenados digitalmente. Direitos humanos off-line devem ser também protegidos online, e lidar com o patrimônio intangível nos meios eletrônicos é imprescindível.

Segurança dos dados na vida e na morte

Muitos de nós vivemos a maior parte de nossas vidas digitalmente, numa sociedade global marcada pelo uso da informação. A solução para alcançar a neutralidade, a proteção e a transparência dos dados será por meio da tecnologia. Independente de qual modelo seja implantado, precisa buscar melhor equacionar direitos privados, e deixar mais claro e transparente quais são os direitos e obrigações de cada um dos envolvidos, sejam os criadores, os titulares, ou os herdeiros.

Vale lembrar também que apesar de ser uma saída aparentemente mais fácil, deixar a senha de acesso para outra pessoa não é uma alternativa sustentável. Juridicamente envolveria o crime de falsa identidade previsto no art. 307 do Código Penal, através do qual alguém se faz passar por você para ter acesso aos seus bens e identidade digitais.

Esta temática tende a se tornar cada vez mais essencial em todas as famílias, cada vez que tivermos que decidir sobre o que fazer com um perfil das mídias sociais de uma pessoa amada que tenha falecido ou mesmo sobre a transferência do patrimônio adquirido em conteúdos que estão em aplicações na internet e não mais em suportes físicos tradicionais como o papel ou o disco de vinil.

Apesar de ninguém gostar de falar na morte, enquanto não há definição sobre o tratamento dos arquivos digitais de falecidos, é importante deixar escrito um testamento, e que ele já tenha recomendações específicas sobre os perfis e a herança digital, para melhor orientar a família sobre o que fazer com os bens e com sua própria existência ou permanência na vida após a morte dentro das mídias sociais.

Devemos lembrar que muitos destes perfis podem receber remuneração, publicidade, e continuar gerando renda e distribuindo direitos (propriedade intelectual) para os herdeiros mesmo após o falecimento do seu autor/criador. Daí a relevância deste tema, não apenas por seus impactos emocionais e sociais, mas também econômico-jurídicos.

*Patricia Peck Pinheiro é sócia e sócia e Head de Direito Digital do escritório PG Advogados. Advogada especialista em Direito Digital, doutora pela Universidade de São Paulo, com PhD em Propriedade Intelectual e Direito Internacional, pesquisadora convidada pelo Instituto Max Planck e pela Universidade de Columbia, professora convidada pela Universidade de Coimbra e pela Universidade Central do Chile. Árbitra do Conselho Arbitral do Estado de São Paulo – CAESP, Vice-Presidente Jurídica da ASEGI, Conselheira de Ética da ABED, Presidente do Instituto iStart de Ética Digital. Autora de 22 livros de Direito Digital.