“Toda companhia será agora uma empresa de software.” Esse é atualmente o mantra do mundo corporativo. Independentemente do setor, os negócios precisam ser digitalizados.

A pandemia acelerou em muito o processo, fazendo com que os planos de transformação digital, que ocorreriam nos próximos três a cinco anos fossem realizados em poucos meses.

Quem não tinha um e-commerce, passou a ter. Quem já tinha, melhorou muito a operação. E algumas empresas já começaram a se transformar em plataformas de múltiplos negócios adjacentes e complementares, se distanciando dos então limites de atuação que caracterizavam os antigos setores de indústria.

A leitura de entrevistas que aparecem na mídia especializada em negócios, com os CEOs de diversas empresas, nos mostra um quadro que se torna bem similar: a maioria afirma que, nos próximos anos, pretende gerar parcela substancial de suas receitas de serviços e tecnologias digitais.

E muitos deles dizem que a digitalização de seus negócios principais será essencial para se manterem economicamente viáveis e competitivos. São exceções os executivos que dizem que seus modelos de negócios atuais permanecerão viáveis, mesmo sem ​​se digitalizarem.

Mas, entre falar em se tornar uma empresa digital e realmente se tornar uma, existe uma grande diferença. A mudança para o digital não requer apenas atualizar sua infraestrutura de TI e tecnologia, mas também transformar todo o seu modelo de negócios, se tornando, na prática, em uma empresa de software.

Pegar uma empresa que sempre considerou sua TI operacional, com atuação subalterna e complementar ao seu negócio e, de um dia para outro inverter a lógica, passando a ser uma empresa digital, de software, é algo muito, mas muito difícil de fazer.

Às vezes, vemos ações como uma simples migração de sistemas para a nuvem ser chamada de transformação digital. Não é! É necessário implementar cuidadosamente uma estratégia de negócio que embuta naturalmente o digital e redesenhar sua atual TI para tirar proveito da automação, escala e flexibilidade que os sistemas baseados em nuvem oferecem.

É de suma importância modernizar a arquitetura e mudar a forma como as equipes de desenvolvimento a implantam. Usar métodos antigos de desenvolvimento, como o vetusto waterfall, que até funcionavam em uma empresa não tecnológica, não irão mais funcionar em uma empresa de software.

Uma empresa de software é diferente de uma empresa tradicional que apenas usa software. Na empresa de software, o software é seu “core business”. Por isso, tornar-se mais focado no software requer uma transformação holística do negócio e de seu modelo operacional.

Uma empresa de software é diferente de uma empresa tradicional que apenas usa software

Para empresas não tecnológicas, isso inclui criar processos mais acelerados e adaptativos para orçamento e planejamento, estabelecer uma cultura que permita muito mais agilidade, incentiva inovação e quase inevitavelmente, muda a estrutura organizacional.

O primeiro passo é entender o que é e como funciona uma empresa de software. Não são os engenheiros de software que tornam as empresas de software bem-sucedidas. Eles estão por toda a parte e muitas vezes são o maior contingente de pessoal das empresas de software, mas na verdade o gerenciamento e a organização dos produtos é que desempenham o papel essencial.

Para entender esse ponto, é necessário revisar nossa ideia do que os gerentes de produto fazem. Por exemplo, na maioria das empresas industriais, os gerentes de produto se concentravam principalmente nas funções de execução e na entrega de produtos de engenharia.

Devido à importância crescente dos dados e ao foco cada vez maior das empresas nos clientes e no design, os gerentes de produto de hoje precisam desempenhar um papel muito mais amplo, unindo o conhecimento do negócio e do cliente, com o conhecimento técnico para realizar mudanças e orquestrar equipes multifuncionais, para garantir o alinhamento entre diversas funções, especialmente marketing e engenharia.

Os gerentes de produto podem ser encarados como “mini-CEOs”, com foco em um determinado produto. Não é por acaso que muitos CEOs de empresas de software e tecnologia, como Satya Nadella, da Microsoft, e Sundar Pichai, do Google, fizeram carreira como gerentes de produtos.

Uma empresa de software tem uma cadência de respostas e criação de novos produtos bem mais acelerada que as empresas não tecnológicas.  O modelo operacional de uma empresa de software requer uma alocação de recursos mais rápida; encoraja a iteração e o refinamento rápido do produto; e coloca em prática a cultura, as ferramentas e práticas que ajudam a acelerar a velocidade e todo o potencial dos seus talentos de desenvolvimento de software.

Uma empresa de software tem uma cadência de respostas e criação de novos produtos bem mais acelerada que as empresas não tecnológicas

Uma empresa não tecnológica para se transformar em empresa de software tem que ir atrás dos talentos, hoje bem escassos. Uma empresa que não seja de software e que quer se transformar em uma, terá muita dificuldade de contratar os melhores talentos que estejam nas empresas nativas de software ou que já sejam digitais.

O cenário não é róseo. De acordo com um estudo da McKinsey, a adoção digital por consumidores e empresas avançou cinco anos em apenas cerca de oito semanas devido à Covid-19. Com isso, a demanda por desenvolvedores “disparou” à medida que organizações de todos os tamanhos estão agora percebendo que as habilidades digitais são essenciais para todas as partes de seus negócios.

Existe hoje um grande risco de colapso nas áreas de TI, principalmente quanto a profissionais de desenvolvimento de aplicações, causado pela falta de mão de obra qualificada. Já não é de hoje que a quantidade de pessoas que se capacitam é menor que o número de vagas abertas na área de TI no Brasil, mais especificamente nas funções relacionadas com desenvolvimento de sistemas.

A pandemia acelerou drasticamente esse cenário, aumentando a demanda por desenvolvedores, uma vez que forçou a grande maioria das empresas a se adaptarem abrupta e compulsoriamente ao universo digital e ao home office, além de ter sido o empurrão que faltava para que essas empresas iniciassem a já atrasada transformação digital em seus processos e serviços.

De acordo com uma pesquisa da Forrester, publicada em 2020, em 65% das organizações, a área de TI não consegue concluir tudo aquilo que é pedido pela área de negócios, por conta da grande demanda de projetos.

Com isso, os profissionais dessa área estão sendo amplamente disputados pelas empresas, o que inflaciona seus salários e, ao mesmo tempo, aumenta a pressão e a cobrança por resultados e desempenho. Esse ciclo coloca os profissionais da área frente a desafios, responsabilidades e projetos de forma precoce, gerando um grande aumento na expectativa de crescimento profissional.

O cenário acaba sendo de desenvolvedores que estão em um nível júnior de experiência, ganhando como pleno e imaginando que são sêniores, demonstrando as distorções que vêm acontecendo por conta desse apagão.

Os desenvolvedores, apesar de não terem como requisitos formação acadêmica específica (como é o caso de médicos, engenheiros e outras carreiras), precisam de habilidades e capacidades bem próprias, como a facilidade de acompanhar e desenvolver raciocínios lógicos, alto poder de abstração e conexão de ideias, afinidade com análise de dados e capacidade de compreender e criar processos eficientes, entre outros.

Esses fatores infelizmente são grandes barreiras para a entrada rápida de profissionais no mercado. Afinal, não é na faculdade que desenvolvem essas habilidades, e sim ao longo de sua vida profissional.

Além disso, a rápida evolução tecnológica cria um processo de obsolescência profissional muito acelerada, que leva a mais um desafio: como sobrecarregado de tarefas, um desenvolvedor consegue acompanhar a evolução tecnológica e se manter atualizado?

No curto prazo, o apagão de mão de obra nas áreas de TI e inovação não será resolvido. Será necessário conviver com este cenário por alguns anos. No médio prazo, esse problema será minimizado, com uma maior maturação e adoção mais ampla de novas tecnologias como low-code, automatização de tarefas de programação por sistemas de IA e ampliação da disponibilidade de talentos, seja por cursos formais ou pela crescente oportunidade de cursos online, no modelo self-service.

Reter esses profissionais também é outro desafio. Além de competir com outras empresas nacionais por esses especialistas, há também a competição internacional pelos profissionais que se destacam. Geralmente, os grandes talentos são levados para o exterior para trabalhar em corporações que lhes pareçam mais atrativas.

Como as empresas não tecnológicas competem em desigualdade de condições no item atratividade profissional não adianta ir em busca dos top-talents que estão nas empresas digitais. Você corre o sério o risco de supervalorizar profissionais que talvez não respondam à altura. Creio que a melhor estratégia será se tornar um “top choice” para o mercado que chamamos de low-tier, ou seja, vá pescar os melhores talentos no mercado de empresas não tecnológicas.

Mas aí temos um desafio a mais: combinar esses novos profissionais low-tier com sua atual equipe de TI, que nunca atuou fazendo parte de uma empresa de software, o que aumenta o grau de dificuldade. Os seus atuais talentos de TI são valiosos. Mas a maioria dos profissionais de TI das empresas tradicionais tem habilidades diferentes das habilidades de que você precisará para engenharia e gerenciamento de produtos de software.

Aí aparece de forma fundamental o papel da cultura organizacional. As empresas de software estão longe de ser homogêneas em seus estilos culturais, valores e normas. Basta olhar as mais conhecidas e ver que mostram comportamentos culturais bem diferentes.

Como não existe uma cultura que sirva para todos, não tente se tornar uma cópia de uma Amazon, Google ou Microsoft, pois só existe uma Amazon, um Google e uma Microsoft.

Como não existe uma cultura que sirva para todos, não tente se tornar uma cópia de uma Amazon, Google ou Microsoft

Mas crie a sua própria missão, propósito e força cultural para construir uma cultura de software que se adapte à sua realidade. Dessa forma, você conseguirá ter um norte que o ajudará a buscar os talentos que que melhor se adaptam à sua empresa e à sua maneira de realizar as coisas.

E finalmente, reveja sua força de vendas. Sua atual equipe de vendas e seu forte relacionamento com os clientes é um excelente ativo, mas até que ponto eles estão preparados para atuar como força de vendas de produtos digitais e criar outros modelos de relacionamento com os atuais e novos clientes?

Vender software é diferente de vender a maioria dos outros produtos. Requer conhecimentos técnicos e frequentemente uma experiência vertical mais profunda. Sua equipe de vendas existente pode não compreender totalmente o software que tentarão vender e pode não ter a experiência necessária para conquistar a confiança do cliente.

Além disso, pode ser que as vendas de software, além de diferentes nos processos, podem gerar comissões diferentes, com valores bem menores que os atuais vendedores estão acostumados.

Como a transformação não ocorre de um dia para o outro, os vendedores terão a opção de vender os produtos tradicionais (o atual core business, com suas melhores comissões) e os novos produtos de software, com comissões menores e ainda um negócio menor na empresa.

Isso faz com que geralmente a força de vendas existente tenda a ignorar os novos produtos de software. Além disso, os contatos nas empresas cliente podem mudar, pois a venda pode ser para outro grupo de executivos, bem como os compradores do cliente que serão envolvidos, também poderão ser diferentes.

Todos esses fatores podem tornar sua atual força de vendas meio problemática para chegar a um novo mercado. Como alternativa considere aglutinar um conjunto de especialistas de software à sua força de vendas. Mas, muitas vezes, esses especialistas não são chamados com a frequência adequada pelos vendedores que querem, muito compreensivelmente, manter sua condição de serem o único ponto de contato para seus clientes.

Entrar no novo jogo e se tornar uma empresa de software está se tornando essencial para a maioria das empresas. Mas sair do discurso para a prática tem seus desafios e armadilhas. Planeje muito bem a transformação, para não ser, no futuro, mais um case de fracasso para ser debatido nas escolas de negócio.

Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.