Foi um imenso escândalo que abalou a França e mobilizou a imprensa e a opinião pública a partir do fim dos anos 2000. Seria um desafio criativo para um roteirista propor uma ficção com personagens tão variados e com tantos desdobramentos, inclusive na presidência da República.
Mas a história aconteceu e envolveu a mulher mais rica do mundo, Liliane Bittencourt, a herdeira da gigante de cosméticos L’Oréal, um fotógrafo dândi e excêntrico que recebeu doações de quase 1 bilhão de euros, além de briga familiar e escândalos de evasão fiscal. E nas altas esferas políticas francesas, com suspeitas de financiamento ilegal de campanha para uma eleição presidencial.
Não faltou nem o mordomo, que desta vez não foi o vilão, e atuou como uma espécie de agente secreto que enquanto servia café gravava conversas da bilionária fragilizada mentalmente com "exploradores". Os diálogos foram entregues à polícia.
O caso que fascinou milhões de franceses continua, anos depois, chacoalhando a França: o documentário “A Bilionária, o Mordomo e o Namorado” (na França com o título “Caso Bettencourt: escândalo na casa da mulher mais rica do mundo”), lançado pela Netflix se classificou como número 1 na plataforma de streaming no país em apenas 24 horas e atualmente ocupa o segundo lugar entre as séries mais vistas, com ampla repercussão na imprensa francesa.
É a história de como o "dinheiro enlouqueceu", como apresenta o documentário. Octogenária na época, Liliane Bettencourt tinha uma fortuna estimada em 30 bilhões de euros. A série com três episódios permite entrar nos detalhes da história da bilionária e de sua relação polêmica com o fotógrafo François-Marie Banier.
Para ele, Liliane doou propriedades, obras de arte, incluindo telas de Picasso e Braque, e seguros de vida de centenas de milhões de euros. O que gerou uma briga na Justiça com sua filha, Françoise Bettencourt-Meyers, sua única herdeira.
Na série, também é possível descobrir a rotina da mansão de Liliane Bettencourt na rue Delabordère em Neuilly-sur-Seine, nas proximidades de Paris, onde trabalhavam cerca de 20 funcionários com salários bem elevados para os padrões franceses (as camareiras, por exemplo, ganhavam 5 mil euros por mês) e onde uma quantidade incrível de dinheiro vivo circulava.
Alguns personagens-chaves, como Patrice de Maistre, gestor de sua fortuna e seu homem de confiança, ou ainda Philippe Courroye, ex-procurador encarregado do caso Bettencourt até 2010, participam do documentário que tem como base as gravações clandestinas originais feitas pelo mordomo Pascal Bonnefoy.
Ao longo de um ano, entre 2009 e 2010, suas gravações resultaram em uma compilação de 25 CDs que totalizam 21 horas de escuta. Nestes áudios, a voz fraca de Liliane, a evidência de sua surdez e situações em que ela não sabe o ano em questão ou não se lembra de doações ou de propriedades indicam sua fragilidade, comprovada depois por uma perícia médica, embora na época ela negasse isso.
Como outros empregados da mansão, Bonnefoy se sentia indignado com o comportamento que ele qualificava como predador do “amigo” da dona da L’Oréal e decidiu gravar por conta própria conversas da bilionária no escritório da casa usando um gravador escondido no carrinho usado para servir os convidados.
Esses áudios foram entregues à filha de Liliane, que os encaminhou à polícia, e também foram parar nas mãos de jornalistas do site Médiapart, fundado por um ex-diretor de redação do Le Monde, e da revista Le Point.
Solidão e vulgaridade
Liliane conheceu Banier em 1987 durante uma sessão de fotos em sua casa para a revista Egoïste. Ele tinha na época 40 anos e conhecia vários artistas (ele tinha sido amigo de Salvador Dalí na juventude), e já havia fotografado inúmeras personalidades.
Conhecido por seu jeito despachado, direto, vulgar para alguns, Banier não hesitou em dizer para a herdeira da maior empresa de cosméticos do mundo mudar o batom horrível que estava usando para tirar as fotos. Outros contam que ele fazia xixi nas roseiras do jardim de Neuilly.
A sessão de fotos foi o ponto de partida de uma amizade completamente diferente para Liliane. Entediada em casa, depressiva, na época na faixa dos 60 anos, ela começou a encontrar atores, artistas, escritores, ir a exposições, comprar obras de arte e até mesmo a usar tênis. Ninguém inicialmente desconfiava dessa relação com jantares, passeios e viagens, tudo pago por ela, claro.
O marido da bilionária, André Bettencourt, que havia sido ministro do general Charles de Gaulle, encorajava os encontros porque achava que Banier distraía sua mulher. O fotógrafo teria feito a herdeira da L’Oréal viver uma segunda juventude.
Mas ela pagou – e bastante – por esses cerca de 20 anos de amizade. Em apenas uma década, de 1997 a 2007, a dona da L’Oréal doou 917 milhões de euros a Banier. Inicialmente foram obras de arte caríssimas, como uma tela do pintor norueguês Edvard Munch por 12 milhões de euros.
Depois vieram propriedades, como a ilha d’Arros, na Seychelles e cheques e mais cheques a perder de vista, sem falar nos objetos da casa que ele levava embora.
Em 2007, quando o marido de Liliane morreu, chegou aos ouvidos de sua filha uma conversa ouvida por uma das camareiras em que o fotógrafo pedia à bilionária para adotá-lo.
Foi a gota d’água, já que ele se tornaria um herdeiro com os mesmos direitos de Françoise. Ao mesmo tempo, a filha também descobre que Banier tinha se tornado legatário universal.
Evasão fiscal e indiciamento de Sarkozy
Em 2007, Françoise Bettencourt-Meyers prestou queixa contra Banier por abuso de confiança. Mãe e filha, que sempre tiveram uma relação fria e distante, mesmo morando a poucos metros de distância em Neuilly-sur-Seine, mantiveram um contato por cartas. Seguiu uma batalha para provar na Justiça o estado de saúde mental da bilionária, já que ela se recusava a fazer os exames.
Se o primeiro capítulo de uma longa saga começou com uma briga de uma família ultrarrica e um potencial abuso de confiança bilionário, as gravações do famoso mordomo deram uma guinada total no caso.
Algumas mídias revelaram, com base nos áudios das conversas entre Liliane e o gestor de sua fortuna, Patrice de Maistre, que a dona da L’Oréal fazia evasão fiscal. Ela tinha 12 contas offshore, em uma delas, na Suíça, havia 65 milhões de euros. Sua ilha nas Seychelles também não era conhecida pelo Fisco francês, lesado em mais de 100 milhões de euros em impostos não pagos.
O escândalo inicial acabou se tornando ainda um tempestade política, que deixou em segundo plano as doações recebidas por Banier. Áudios, reforçados pelas declarações da contadora de Liliane, Claire Thibout, apontavam que o ministro do Orçamento, Éric Woerth, que havia sido o tesoureiro da campanha do ex-presidente Nicolas Sarkozy, eleito em 2007, havia recebido um envelope de 150 mil euros (não declarados à Justiça eleitoral), o que constituía o delito de financiamento ilegal de partido.
Detalhe: Woerth, “um amigo”, como o chamou o gestor da fortuna de Bettencourt em um áudio, era o responsável por lutar contra a fraude fiscal (ele foi ministro do Orçamento até 2010 e depois se tornou ministro do Trabalho), em um claro conflito de interesses. O documentário não conta que a mulher de Woerth trabalhava com Patrice de Maistre, o mesmo cuja função era dissimular a fortuna da bilionária para que ela pagasse menos impostos.
Após deixar o cargo, Sarkozy foi indiciado, mas o processo contra ele na Justiça não deu em nada por falta de provas. Bannier também se deu bem judicialmente, já que um recurso, em 2016, contra sua condenação inicial o livrou da prisão e, sobretudo, ele não teve mais de pagar 158 milhões de euros em perdas e danos à Françoise Bettencourt-Meyers.
Um acordo entre a mãe e a filha em 2010 havia validado uma parte das doações de obras de arte feitas ao fotógrafo. O Estado francês confiscou, no entanto, uma parte dos bens imobiliários, segundo a imprensa francesa.
Discreto, Banier continuou sua atividade de fotógrafo e fez uma exposição no museu Arthur Rimbaud, no leste da França, em 2021. Ele provavelmente mantém o hábito de lugares sofisticados. A reportagem de NeoFeed o viu jantando com amigos no restaurante Le Grand Véfour, no Palais Royal, em Paris, no primeiro semestre deste ano.
Liliane Bettencourt faleceu em setembro de 2017, aos 94 anos, com Alzheimer severo diagnosticado. Sua única filha, que herdou o título de mulher mais rica do mundo, reina sobre o império L’Oréal, que desde então se valorizou na bolsa. Sua fortuna é estimada, segundo o documentário, em 80 bilhões de euros.