Um dos principais desafios impostos pelo futuro sustentável (quiçá o maior deles) é encontrar o ponto de equilíbrio entre duas ações aparentemente inconciliáveis: atender às demandas de uma população em crescimento exponencial (seremos 10,3 bilhões em 2080), sem ultrapassar os limites do planeta.
O novo relatório da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) traz boas novas sobre o setor de transportes — uma das principais fontes de emissões de gases de efeito estufa (GEE), mas fundamental para a transição energética. A substituição dos veículos à combustão pelos eletrificados (os 100% elétricos e os híbridos) avança em ritmo acelerado, mostra o Global EV Outlook 2024.
“Os carros elétricos [EV] continuam a progredir para se tornarem um produto de mercado de massa em um número maior de países”, informa o levantamento. No ano passado, as vendas globais de EV bateram recorde e chegaram a 14 milhões — o equivalente a 18% das comercializações. O que representa um crescimento de 35%, entre 2022 e 2023.
Para 2024, a expectativa é a de que as comercializações atinjam 18 milhões de unidades. Mantida a evolução registrada até agora, em 2035, todo automóvel negociado no mundo será movido a eletricidade.
A participação do Brasil no mercado global de EV, conforme a agência, gira em torno de 3%. Pode parecer pouco, mas não é. Um olhar mais atento para a realidade do país revela conquistas importantes rumo à descarbonização da frota.
Se em 2019, circulavam pelas ruas e estradas brasileiras quase 32,8 mil veículos eletrificados, hoje eles somam 385,21 mil — ou seja, a frota cresceu cerca de 12 vezes, em apenas cinco anos.
Ônibus também
E tudo leva a crer que, nos próximos anos, o movimento segue em ascensão. Em dezembro, o governo federal lançou o Mover: Programa de Mobilidade Verde. Publicada em edição extra do Diário Oficial no penúltimo dia do ano, a medida provisória não só amplia exigências para produção de veículos mais sustentáveis em geral, como prevê estímulos para novas tecnologias em mobilidade e logística.
Está prevista até 2028 a concessão de R$ 19 bilhões em créditos, contra o R$ 1,7 bilhão do projeto anterior, o Rota 2030. Além do Mover, o Novo PAC Seleções, lançado em setembro de 2023, determina o investimento de R$ 10,6 bilhões para a modernização da frota de transportes públicos. O dinheiro deve ser distribuído entre os municípios e prevê a compra de 2,5 mil ônibus elétricos.
"Iniciativas assim são muito bem-vindas, pois, no caminho para transportes sustentáveis, os ônibus são ainda mais importantes do que os carros", diz Roberto Marx, professor da faculdade de engenharia de produção da Escola Politécnica, da Universidade de São Paulo (USP), ao NeoFeed. “Eles solucionam dois problemas: eliminam o uso do diesel, um grande poluidor, e ajudam a reduzir o número de carros nas ruas."
Eletricidade e etanol
Ainda que sejam os mais adequados, pois emitem zero carbono, os veículos 100% elétricos (BEV, na sigla em inglês) ainda enfrentam alguns entraves para que sejam adotados em grande escalas — consomem muita eletricidade e exigem muito tempo de carregamento.
Há ainda outro obstáculo, como Júlio Câmara, professor do curso de especialização em veículos elétricos, do Senai Bahia, explica: "A ampliação da rede de carregadores ainda é um desafio para tornar esses veículos mais acessíveis."
No Brasil, são 4,6 mil eletropostos, previstos chegar a 10 mil nos próximos dois anos, graças a parcerias entre as empresas de postos de combustíveis e as montadoras de EV. O problema é a má distribuição dos pontos de carregamento: mais da metade está nas regiões Sul e Sudeste, com um terço deles apenas no estado de São Paulo, segundo a Associação Brasileira de Veículos Elétricos.
Enquanto tecnologias mais avançadas são desenvolvidas, os veículos híbrido, movidos a eletricidades e combustão, têm um papel importante na transição energética. Se o combustível utilizado for o etanol, melhor ainda.
Os híbridos convencionais (HEV) têm uma bateria pequena, com carregamento autônomo durante as frenagens, mas que dura pouco. Com esses modelos, a economia de combustível gira em torno de 30% a 35%.
Já os chamados plug-ins (PHEV), assim como os completamente elétricos, precisam ficar conectados a um carregador para reabastecer. A bateria tem autonomia para rodar entre 50 e 100 quilômetros apenas, mas quando ela acaba, o motor a combustão entra em funcionamento.
Outro desafio para adoção em massa dos veículos elétricos aqui no Brasil é o preço. “Os modelos mais baratos custam cerca de R$ 130 mil, praticamente o dobro de um carro popular zero quilômetro", relata o professor Câmara. Aqui, como na Indonésia e na Malásia, a eletrificação da frota é sustentada, sobretudo pelos EV, digamos, “menos caros”, especialmente os chineses.
Mas, à medida em que os mercados amadurecem, os EV de segunda mão se tornarão mais amplamente disponíveis, informa o Global EV Outlook 2024. “Os preços dos carros elétricos usados estão caindo rapidamente e se tornando competitivos com os equivalentes de motor de combustão. Olhando para o futuro, o comércio internacional de carros elétricos usados também deve aumentar, inclusive para economias emergentes e em desenvolvimento fora da China”.
A importância da reciclagem
Se não há futuro verde sem transporte verde, não há transporte verde sem minérios, as matérias-primas das baterias. A descarbonização passa, portanto, também pela extração responsável de lítio, cobalto, níquel, manganês, grafite, alumínio, cobre, aço, ferro, terras raras e nióbio, entre outros compostos.
Na adequação aos novos tempos, várias companhias mineradoras já investem na eletrificação das frotas, na substituição das fontes de eletricidade por energia renovável e na adoção dos preceitos da circularidade, ao longo de toda a cadeia de produção, entre outras medidas.
Um automóvel elétrico preserva o meio ambiente quando está rodando, O.K. Mas o veículo ideal tem de ser igualmente limpo da obtenção dos insumos para sua fabricação ao destino dado a ele, no fim de sua vida útil. E as baterias merecem uma atenção especial, dado os materiais que as compõem.
Atualmente, devido à complexidade e alto custo do processo, apenas 5% das baterias são reaproveitadas. “Caminhamos para isso, pois, no mundo todo, há grupos buscando soluções nesse sentido. É uma questão de tempo", diz Câmara.
O exemplo chinês
Na opinião do professor Marx, da USP, o Brasil vive hoje uma euforia em relação aos veículos elétricos semelhante à que Estados Unidos, França e Alemanha viveram pouco tempo atrás. Depois do boom, o ritmo de avanço desacelerou.
“Nos Estados Unidos, os novos registros de carros elétricos totalizaram 1,4 milhão em 2023, aumentando em mais de 40% em comparação a 2022”, informa a IEA. “Embora o crescimento anual relativo em 2023 tenha sido mais lento do que nos dois anos anteriores, a demanda por carros elétricos e o crescimento absoluto permaneceram fortes.”
Não há especialista do setor de transportes que não cite a China como exemplo, quando o assunto é EV. Soberano absoluto no mercado, o país detém 60% das vendas globais — 9 milhões de unidades em 2023. Tem mais. Cerca de 70% da capacidade mundial de reciclagem de baterias estão com os chineses. E a frota interna é composta basicamente por EV.
Não é mero acaso. Grande parte da primazia chinesa no setor se deve a Wan Gang, ex-vice-presidente da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, ex-ministro de Ciência e Tecnologia e tido como o “pai da indústria de carros elétricos” do país.
Há 20 anos, ele já defendia que a China investisse no que considerava a tecnologia do futuro antes de outros países. E hoje, o país asiático domina um mercado global avaliado hoje em US$ 670 bilhões e previsto chegar a US$ 1,3 trilhão, em 2029.
Para conseguir esse resultado, o governo adotou políticas de incentivo para o desenvolvimento não só da indústria de EV, mas da mineração, da rede de recarga e até das concessionárias.
No Brasil, com o intuito de incentivar a produção no país e atrair investimentos, o governo aumentou o imposto de importação para veículos elétricos. A taxação é de 25% para os modelos híbridos convencionais, 20% para os híbridos plug-in e 18% os totalmente elétricos.
Em um sistema de cobrança gradual, é o segundo reajuste desde janeiro. Em julho de 2025 e de 2026, os impostos voltam a subir.