Algumas peças de propaganda veiculadas durante a pandemia tentaram nos tranquilizar sob a alegação de que, em breve, tudo voltará ao normal. Espero que não. A ideia me causa algum horror.
Retornar a uma normalidade que já andava capenga (economia oscilante, aumento das desigualdades sociais, uso desequilibrado de bens do patrimônio ambiental, escassez de recursos, colaboradores de empresas cada vez mais doentes, emergência climática) seria, no meu modo de ver, o mesmo que admitir que a crise não serviu para nada além de nos deixar mais pobres e nos colocar de castigo. Penso que a humanidade, apesar de seus pecados, mereça um “novo normal.”
Não acho que grandes crises globais, como a do coronavírus, tendem naturalmente a melhorar os seres humanos e as empresas. Afinal, elas são fenômenos neutros, não intencionais. Creio, no entanto, que elas podem turbinar mudanças em pessoas e organizações que, tendo admitido suas falhas e faltas, já vinham refletindo sobre sua evolução.
As crises derrubam máscaras. Expõem ao julgamento do público a intimidade dos valores pessoais e organizacionais. E, por isso, revelam o pior e o melhor, promovem uma seleção antinatural da espécie.
Tome-se como exemplo as empresas brasileiras e os seus líderes. De quem menos se esperava nada veio mesmo. E de quem mais se esperava, caso de Luiza Trajano, veio além do que se podia imaginar em termos de solidariedade, altruísmo e espírito coletivista. Reféns da lógica da economia antes das pessoas, os velhos líderes de pés de barro viraram pó com o vento.
Uma nova safra de líderes orientados por valores tomou o centro do palco, apoiada em medidas que criaram confiança como a garantia de emprego, a atenção de encaminhar colaboradores de escritório para o home office, o cuidado de garantir o bem estar dos que não puderam deixar a linha de frente, a reconversão de processos fabris para produzir álcool em gel, máscaras, aventais, luvas e outros equipamentos, a aquisição de testes e respiradores mecânicos e até mesmo a construção de hospitais de campanha.
Jean Jereissatti, CEO da Ambev, surgiu como um dos expoentes deste tipo de liderança mais empática e cuidadosa. Uma frase que ele me disse, há duas semanas, sintetiza bem um novo jeito de pensar e fazer negócios: “Neste momento, precisamos manter os pés no chão, reconhecer a nossa humanidade e o fato de estarmos todos cheios de incertezas, lutando pela sobrevivência de indivíduos e organizações. Temos uma urgência inédita de unir empresas, marcas e indivíduos. Passada a pandemia, quem sabe veremos uma virada de chave na direção de negócios com impactos mais positivos. Quem sabe surja disso tudo uma nova realidade empresarial capaz de ativar todo o potencial econômico do Brasil. Uma realidade na qual as empresas sejam, acima de tudo, colaborativas”
Compartilho com Jereissati a expectativa (ou seria melhor dizer esperança) por uma nova ordem de valores nas empresas. Mais do que isso, aposto mesmo que ela já esteja em curso com a maior valorização por parte do mercado financeiro do conceito de sustentabilidade ou das questões de ESG (Ambientais, sociais e de governança.)
Nesse “novo normal”, confirmarei as minhas melhores expectativas até o final deste louco 2020 se cinco tendências de mudança se transformarem efetivamente em mudança. São elas:
1 - Humanos tratados como humanos e não mais meros recursos
Cada vez mais as pessoas vão querer trabalhar em empresas que pensam e agem como indivíduos decentes. Desejarão atuar, cada vez mais, em organizações cujos valores se afinam com os seus e que demonstrem cuidado individualizado, escuta afetiva, respeito às diferenças e preocupação genuína com o bem estar e a qualidade de vida não apenas no ambiente de trabalho mas também fora dele.
Introduzido sem tempo para adaptação, durante a quarentena, o trabalho à distância é uma boa ideia que precisa ser estimulada, na medida em que oferece aos indivíduos a possibilidade de equilibrar o tempo dedicado ao trabalho com o tempo destinado à vida, além de melhorar a mobilidade urbana e contribuir para a redução de emissões de gases de efeito estufa.
2 - Mais cooperação na construção de respostas consistentes para os dilemas da sociedade
Uma das experiências mais curiosas foi acompanhar, no auge da pandemia, o movimento de articulação de empresas de um mesmo setor em torno de desafios comuns. Isso ocorreu com os três maiores bancos privados, juntando esforços para comprar testes, respiradores e equipamentos.
Também se verificou com as três maiores companhias de telecom, que liberaram serviços para as pessoas poderem trabalhar e viver com conforto na quarentena. Hospitais de campanha foram construídos com recursos e expertise de empresas de diferentes áreas e portes. E também em parceria com governos.
A concorrência, sempre áspera, entrou em estado de hibernação. Ninguém se lembrou de discutir a melhor posição para a logomarca na placa
A concorrência, sempre áspera, entrou em estado de hibernação. Ninguém se lembrou de discutir a melhor posição para a logomarca na placa. Se foi possível atuar em cooperação nas tempestades, por que não fazê-la nos tempos de calmaria, de modo planejado e sistêmico, procurando suprir déficits históricos de bem estar social.
3 - Fortalecimento do investimento social privado estratégico
Essa pandemia registrou um recorde histórico de doação de empresas. Apenas uma delas, o Itaú Unibanco, aportou mais de um bilhão de reais. Restou-nos a todos uma sensação não exatamente nova: recursos há, e muito, para investir, o que talvez falte é vontade ou, arrisco dizer, foco.
Imagine o caminhão de recursos disponíveis nos institutos, fundações e departamentos internos de empresas. Multiplique-o por dois (um número conservador, dado o fato de que houve uma evidente suplementação de verbas na crise).
Pense nesse montante como um grande fundo, sob uma única gestão, dedicado a suprir, por um período de tempo, uma necessidade básica do brasileiro, como uma boa estrutura de saúde. É possível, é inteligente. A diferença pode ser tanto maior quanto mais esses recursos complementarem investimentos em políticas públicas básicas.
4 - Geração de valor compartilhado na prática e não no discurso
Em tempos de coronavírus, as empresas “descobriram” que a sua prosperidade depende da prosperidade dos seus fornecedores e parceiros de negócio. Mais do que com solidariedade, essa “descoberta” tem a ver com instinto de sobrevivência: afinal, será mais difícil retomar os negócios para aquelas empresas que deixaram os seus parceiros, pequenos e médios, mais suscetíveis á crise, á mercê de sua própria sorte.
Se foi possível, no meio da “coronacrise”, praticar valor compartilhado, por que não fortalecer os parceiros nos tempos normais
Muitas, felizmente, tiveram a sensibilidade de investir em socorro aos parceiros, ampliando crédito, criando fundos de apoio, oferecendo suporte de gestão financeira e antecipando recebíveis por serviços. Aprenderam na marra a noção de interdependência. Se foi possível, no meio da “coronacrise”, praticar valor compartilhado, por que não fortalecer os parceiros nos tempos normais, com estrutura, educação, financiamento e remunerações adequadas.
5 - Negócios como parte da solução e não parte do problema
Empresas éticas, transparentes, íntegras, que respeitam as pessoas, cuidam do meio ambiente e colocam o propósito antes do lucro já estavam em curva de alta antes da pandemia.
Devem continuar a crescer, com menos exposição a risco e com ativos mais valorizados. Ao final da pandemia, governos e bancos podem acelerar a agenda das mudanças climáticas e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, utilizando o seu poder de conceder empréstimos e isenções fiscais para estimular, como contrapartida, investimento na adoção de energias renováveis, preservação da floresta em pé, economia circular, geração de trabalho e renda, regeneração de ambientes degradados, saúde, segurança e bem estar de pessoas e comunidades.
Ricardo Voltolini é CEO da consultoria Ideia Sustentável, consultor master, escritor, palestrante e conselheiro de empresas. Criador da Plataforma Liderança com Valores, escreveu dez livros, entre os quais “Conversas com Líderes Sustentáveis” (SENACSP/2011). É professor da Fundação Dom Cabral e do ISAE-FGV.