Pelé, o único jogador de futebol que conquistou três Copas do Mundo (1958, 1962 e 1970), é responsável por outra façanha fora de campo. E talvez tão importante quanto a sua genialidade com a bola nos pés.

Conforme mostra o documentário “Pelé”, disponível no catálogo da Netflix a partir do dia 23 de fevereiro, Edson Arantes do Nascimento foi peça-chave no processo de resgate da autoestima do brasileiro. A sua projeção mundial como "o rei do futebol" teria ajudado o povo a superar o que o escritor Nelson Rodrigues chamou de “complexo de vira-lata”, no fim dos anos 1950.

Ao percorrer a trajetória de Pelé, desde o nascimento do ídolo no Santos até a vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1970, o documentário discute a influência do craque na criação da identidade nacional. Ninguém melhor que Pelé, um herói produzido pelo futebol, para simbolizar naquela época a nação que o Brasil queria ser.

Os anos de ouro do ídolo são revisitados pelo olhar da dupla de diretores David Tryhorn e Ben Nicholas, da produtora inglesa Pitch Productions. Eles são mais conhecidos por “Crossing the Line” (2016), documentário sobre os altos e baixos do ex-atleta olímpico Danny Harris.

Para acompanhar o material de arquivo de Pelé, os cineastas entrevistaram não só o próprio jogador, atualmente com 80 anos, como alguns de seus familiares e seus ex-companheiros em campo. Entre eles, Rivellino, Zagallo, Amarildo e Jairzinho.

Depoimentos de outras personalidades, como políticos, escritores e jornalistas que viveram o período, também ajudam a entender como o mito Pelé foi determinante na construção da “brasilidade”.

“Em 1950, quando a Copa do Mundo foi feita aqui, era grande a esperança de o Brasil virar um país conhecido e sair daquela coisa muito primária”, recordou o escritor Roberto Muylaert, em seu depoimento no filme. “O Brasil estava empenhado em fazer todo o possível para passar a existir no cenário mundial através do futebol”, completou ele.

Mas o Brasil perdeu o troféu em casa, por 2 a 1, para o Uruguai, diante de 200 mil torcedores no recém-construído Maracanã. “1950 representa o grande o fracasso nacional. Não foi à toa que Nelson Rodrigues classificou aquela derrota como uma demonstração do complexo de vira-lata”, disse o jornalista esportivo Juca Kfouri, no documentário.

Pelé surgiu como um antídoto ao sentimento de inferioridade, devolvendo o amor-próprio ao brasileiro, em 1958. Foi nesse ano que o País se tornou pela primeira vez o campeão do mundo no futebol, no torneio disputado na Suécia.

Comandada por Pelé, que tinha apenas 17 anos, a seleção venceu a dona da casa, a Suécia, por 5 a 2, com dois gols do craque. E, a partir daí, pelo menos no futebol, o brasileiro teria um motivo para se sentir melhor do que os outros povos.

“Pelé surge em um momento em que o Brasil também, de certa maneira, surge como um país moderno”, afirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em depoimento no filme. “Não era um país só agroexportador, mas tinha indústria, eficiência e cultura. Um Brasil que acreditava nele mesmo, um Brasil que podia dar certo”, completou Cardoso.

Pelé relembra a emoção da Copa de 70 no documentário

Reverenciado por todas as classes sociais, Pelé tinha as características certas para representar o ideal de um povo. Além das habilidades técnicas, para criar jogadas geniais e marcar gols que entraram para a história, ele exibia força, coragem, virilidade, criatividade e autoconfiança em campo. E ele ainda tinha uma origem humilde, o que permitia que o craque personificasse a ideia de superação social.

Como o documentário explora a imagem de Pelé sempre associada ao Brasil, a ditadura militar, iniciada em 1964, também é revisitada aqui. Até porque esse período ameaçou o próprio reinado do jogador no País, por ele nunca ter se posicionado politicamente.

O encontro do ídolo com o general Emílio Garrastazu Médici, que foi presidente de 1969 a 1974, é resgatado no filme. Fã de futebol, o governante convidou o craque para visitá-lo no Palácio da Alvorada poucos dias depois de Pelé ter marcado o seu milésimo gol, em novembro de 1969, em partida contra o Vasco, no Maracanã.

Daí em diante, Pelé começou ser acusado de se tornar uma espécie de agente de propaganda para o governo Médici. “Pelé tinha um comportamento do negro que só fala ‘sim senhor’, de submisso. Aquele que aceita tudo, não contesta, não critica e não julga. É uma das críticas a Pelé que mantenho até hoje”, disse o ex-jogador Paulo César Caju, no filme.

Em sua defesa, Pelé afirmou que “não tinha condições de fazer outra coisa em uma ditadura”, durante a qual ele se sentiu “perdido”. “Eu não era um super-homem ou alguém milagroso. Era só uma pessoa normal com o dom de jogar futebol. Mas tenho certeza de que ajudei muito mais o Brasil com o meu futebol e com a minha maneira de viver do que muitos políticos que ganham e trabalham para fazer isso”, contou o ídolo, em sua entrevista para o documentário.

“Pelé” termina com o que o craque define como o “melhor momento” de sua vida, a Copa do Mundo de 70, no México. O jogador se emociona diante da câmera ao recordar o que sentiu no ônibus, ao chegar ao Estádio Azteca, para a disputa da grande final, contra a Itália.

“Me deu um acesso de choro. E eu não conseguia parar. Por eu ser o jogador mais antigo, os outros deviam estar se perguntando: ‘por que ele está chorando’? Foi uma emoção, um desabafo. Era a minha última Copa”, recordou Pelé.

E ao final da partida, quando o placar marcou 4 a 1 para o Brasil, o que ele sentiu? “O grande presente que você ganha na vitória não é a joia”, disse o ex-jogador, referindo-se ao troféu em si – na época, a Taça Jules Rimet. “É o alívio.”