Parece que o poço não tem fundo: não bastasse a mortalidade pelo vírus estar batendo recordes todos os dias, preços sobem e a recuperação econômica é débil. E então vem uma reforma ministerial atribulada, que explicita divergências entre militares, submissão do Presidente ao Centrão e perda de quadros notáveis do primeiro escalão. Para alguns, estão dadas as condições para a tempestade perfeita: pandemia galopante, inflação, recessão e ameaça à Democracia.
Menos.
Ainda que trágica, a pandemia está perto do seu pico. Com a vacinação se firmando, o grupo de maior risco fica imunizado, bloqueando a expansão da taxa de mortalidade. As medidas de isolamento estão provando sua eficácia, como mostra o desempenho de Araraquara, que passou de caso mais grave do Estado de São Paulo para mortalidade próxima de zero, a partir de um lockdown corajoso.
Tragicamente, as mortes vão continuar por muitos meses, mas, em breve, a taxas nitidamente cadentes. As internações decrescentes são a vanguarda desta tendência.
No plano econômico, apesar das perdas de renda impostas pela alta de preços básicos, não há sinais de perenização dessa pressão inflacionária. Preços de commodities começam a reverter a trajetória altista e não há pressão de demanda necessária ao repasse de custos a preços. Haja vista que a última medida mensal dos preços ao consumidor foi de apenas 0,20%, quando se elimina o efeito petróleo.
Cresceremos menos do que o possível, pela impedância dos juros e vulnerabilidade do consumo, mas os dados recentes de emprego sinalizam um PIB cerca de 4% maior neste ano.
E a crise política? Bem, um país governado por um voluntarista como Bolsonaro jamais desfrutará de uma semana sequer de serenidade suíça no cenário político. Mas analisando objetivamente os fatos seguintes, é difícil alegar que haja uma ameaça crescente às instituições democráticas:
1 - O relacionamento sinergético entre os Três Poderes evoluiu significativamente de um ano para cá. As manifestações agressivas de Bolsonaro contra o STF cessaram e o diálogo entre eles se estreita. Na interface com o Parlamento, o ganho de governabilidade é surpreendente, as duas Casas são comandadas por pragmáticos, zelosos do espaço de Legislativo, mas negociando continuamente avanços modernizantes e abrilhantando as práticas democráticas;
2 - A ejeção do trio Weintraub, Araújo e Pazuello consolida o distanciamento do Executivo do radicalismo boçal da Direita. E se Bolsonaro estiver lamentando estas perdas, tanto melhor, pois então a mudança teria sido a vitória do bom senso sobre as idiossincrasias do Presidente. Ponto para a Democracia;
3 - Do tumulto que ainda abala as áreas da Defesa, a lição mais relevante já está disponível: o primeiro escalão militar tem um compromisso inegociável com a reverência às instituições republicanas. Nunca havíamos visto uma manifestação tão explícita e generalizada de que os tempos da arbitrariedade ficarão confinado ao nosso passado;
4 - Bolsonaro usando máscara em público é mais uma evidência de que o bem comum prevalece sobre o obscurantismo. A mobilização de empresários e economistas exigindo o fim do proselitismo no trato da mais grave crise a nos afetar é sintoma forte de que a sociedade consegue impor limites à irresponsabilidade no enfrentamento dos grandes desafios.
Note que não argumento que Bolsonaro tenha tido uma epifania e se transformou em baluarte do respeito à Constituição. Na verdade, o que ele está conseguindo com suas manifestações a favor do autoritarismo e do negativismo é similar ao que faz a vacina: suas tentativas canhestras de retrocesso institucional funcionam como fortalecimento dos mecanismos de defesa e tornam o organismo social mais robusto nas suas convicções democráticas.
O tempo está-se encarregando de provar que o Centrão é mais um propulsor de estabilidade política do que um antro de fisiológicos descompromissados com seus eleitores. E, ao defenderem fervorosamente as emendas parlamentares, implicitamente, reconhecem que as vinculações obrigatórias são invasões da soberania do Parlamento para priorizar programas e projetos públicos.
E se o sistema de freios e contrapesos tem demonstrado sua eficácia, recorrer ao impeachment com a recorrência com que se toma aspirina para dor de cabeça é um desserviço à consolidação democrática: votar errado em uma eleição e corrigir o erro no pleito seguinte é a prática mais nobre do aprendizado democrático.
Luis Paulo Rosenberg é economista e consultor, com carreira destacada nas áreas acadêmica, empresarial e na atividade pública. PHD em economia pela Vanderbilt University, atuou como assessor do Ministro Delfim Neto, responsável pelos setores de Ciência, Tecnologia e Investimentos em Energia. Foi membro da equipe de negociação com o FMI, membro do Conselho de Administração da Cia. Suzano, Nestlé e Banco BBVA. Atualmente é sócio-diretor da Rosenberg Partners.