Anos de inflação anteriores ao Plano Real produziram efeitos em todos os setores da economia, uma época em que governos, empresas e pessoas corriam diariamente ao setor financeiro em busca de proteção da moeda.
A inflação havia chegado perto de 100% ao mês criando a famosa “era overnight”. Empreendedores modelavam negócios a partir das margens geradas, não somente da atividade “core”, mas também pela inteligência em proteger o fluxo do dinheiro, aproveitando-se do “float” (retenção do dinheiro por um período).
Criou-se um ambiente favorável para bancos estaduais, bancos médios, financeiras, factoring, as "fintechs da época". O mercado demandava soluções rápidas e criativas, e quem podia oferecer eram os agentes do mercado financeiro. Os governos também demandavam proteção do poder de compra dos ecossistemas de arrecadação, pagamentos de fornecedores e funcionários, bem como soluções para financiar a dívida interna.
O sistema financeiro atual foi forjado num ambiente hostil e foi muito competente para oferecer soluções para circulação do dinheiro em seus canais. As grandes empresas tiveram que montar departamentos financeiros com especialistas em precificar o faturamento com base no ambiente volátil e valiam-se dos bancos para proteção.
O spread gerado pelo “float” foi combustível para manter ativo o ecossistema de “fintechs da geração X”, composto por bancos de nicho, financeiras e também varejistas, cuja margem principal vinha do financeiro.
A partir de 1994, com o Plano Real, e posteriormente a Lei de Responsabilidade, o ambiente começou a mudar completamente. A redução do spread gerado pelo “float” obrigou os players a buscarem outras fontes de receita para manter a geração de resultados.
A alternativa dos bancos foi aumentar o escopo de atuação, criando o “marketplace analógico”, oferecendo o balcão das agências para seguradoras, por exemplo. Valendo-se do aumento de escopo do negócio autorizado pelo Conselho Monetário Nacional com a criação da figura do banco múltiplo, produtos como seguros, previdência e capitalização começaram a fazer parte de fontes de receitas dos bancos.
Essa estratégia mostrou-se vencedora, mas era preciso ter escala para sobreviver num ambiente de inflação controlada e juros civilizados. A mudança do ambiente competitivo provocou o movimento de consolidação e, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, o movimento foi acelerado, tendo em vista que os bancos estaduais não tinham escala e não poderiam mais se prestar a financiar os governos.
Chegamos, portanto, a década de 2000 em plena ebulição da consolidação no mercado financeiro, através de fusões e aquisições. Os players intensificaram a estratégia para aumentar a escala e conseguir monetizar os negócios com produtos do “marketplace” e também voltaram focar sua atividade fim, que é crédito, em especial o de pessoa física.
Os cinco maiores bancos tiveram sucesso, pois, na época da corrida inflacionária, tinham percebido as “dores dos clientes” e construído produtos e serviços que ajudavam governos, empresas e pessoas a se protegerem, portanto, o “PIB” já circulava dentro desses bancos.
Em um ambiente de inflação controlada, grandes empresas e entes públicos não precisavam mais se preocupar com o fluxo financeiro, os bancos se tornaram especialistas em oferecer soluções para toda a cadeia produtiva e para todos os públicos. A consolidação do mercado levou a concentração e hoje cerca de 85% dos negócios estão em cinco bancos. Esses players empoderados valeram-se do efeito escala e escopo dos seus negócios para consolidar a liderança.
Como o fluxo da economia circula nos ecossistemas dos bancos, eles conseguem precificar muito melhor os riscos e gerar eficiência. Se por um lado esses grandes players fortalecidos pela escala tiveram condições de, competindo entre si, levar muito mais benefícios a sociedade, por outro lado criou-se uma barreira a novos entrantes, principalmente porque o canal de entrega da proposta de valor era somente a loja física.
O mercado financeiro brasileiro sempre foi vanguarda em inovação, desde o início dos anos 2000 podemos enviar dinheiro no mesmo dia para outra pessoa. O mercado de pagamentos também inovou levando solução das “maquininhas” e cartão como meio de pagamentos, substituindo os cheques. Todas inovações trouxeram enormes ganhos, porém nenhuma delas pode ser comparada ao fenômeno do celular, que empoderou o consumidor e ainda viabilizou um ecossistema totalmente digital.
A adoção do smartphone com o principal “device” para serviços financeiros criou o ambiente perfeito para que as “novas fintechs” se viabilizassem oferecendo soluções para nichos de mercado não explorados pelos incumbentes, ou soluções para “dores” que os grandes não estavam conseguindo resolver.
Esse movimento foi acelerado pela agenda pró-competição, pró-educação financeira e pró-inclusão financeira iniciado na metade da década de 2010 pelo Bacen, com a criação da conta de pagamentos, instituições de pagamentos, e mais recente o PIX e o open banking.
O PIX e open banking são muito mais que marcos regulatórios, são plataformas que estimularão a criação de novos produtos, serviços e modelos de negócios. A grande questão que fica é se alguma nova fintech irá conseguir montar um ecossistema comparável a um dos cinco bancos, onde, de fato, circula o PIB, ou se elas ao final da corrida, se viabilizarão em nichos, em alguma parte dos grandes ecossistemas ou serão incorporadas por algum incumbente.
Ter um ecossistema igual aos bancos é, de fato, ter um diferencial muito competitivo, só para ter uma ideia do que isso representa, as despesas de provisão de crédito de um “new bank”, são o dobro de um grande banco no crédito pessoal. Por que isso acontece? O banco por ter o fluxo do dinheiro circulando em seu ecossistema, através do pagamento de salários para empresas e governos, consegue mitigar o risco.
O open banking isoladamente não vai resolver isso, tendo em vista que o insurgente terá a informação do histórico de pagamento do novo cliente, mas ele conseguirá de fato trazer o “PIB” para circular dentro de seus canais? Será que a agilidade das fintechs será suficiente para vencer o ecossistema robusto montado pelos grandes bancos, mesmo eles sendo dependentes de legados e agências físicas?
O Pix teria equilibrado o jogo da experiência do cliente entre grandes bancos e fintechs? Será que o open banking por si só será suficiente para promover a desconcentração ou ainda necessitaremos de legislação especifica como as que existem nos Estados Unidos em relação a concentração de mercado ? São questões que nortearão o debate nesta década.
Não se pode negar que no final da batalha quem irá declarar o vencedor será o consumidor, mas a construção de um ecossistema digital equivalente ao construído pelos cinco maiores bancos é um movimento complexo e que vai além da “UX” (experiência do usuário) ou da solução monoproduto. Será preciso ter solução completa para o fluxo do dinheiro na construção de um negócio sustentável.
As maiores oportunidades para fintechs estão em soluções especializadas e de nichos, que durante a jornada “capturarão o exit” ao serem incorporadas pelos maiores players. Será que esse movimento das fintechs “feitas para serem vendidas” não reforçara ainda mais a concentração? Muito cedo ainda para afirmar, mas a sobrevivência passa por escala e escopo, e a consequência é a concentração.
Da mesma forma que o plano real e a lei de responsabilidade fiscal transformaram o mercado financeiro, PIX e open banking tem potencial para fazer isso na próxima década, mas o jogo está aberto na competição entre incumbentes e insurgentes.
De um lado as startups levam vantagem por serem “leves” por estar em nuvem, usam métodos ágeis de gestão, têm mindset de tecnologia e são orientadas por dados, de outro lado os incumbentes estão presentes nas cadeias produtivas do país e têm o “PIB” circulando em seus canais. Bancos tradicionais tem legados e custos de agências físicas como uma espécie de bola de ferro na competição, mas as fintechs ainda não tem “PIB”.
Gueitiro Genso é especialista em serviços financeiros e pagamentos, advisor, mentor e ex-CEO do PicPay, também foi presidente da Previ e vice-presidente do Banco do Brasil.