O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) escreveu que “alguns homens nascem póstumos”. Para mim, este é o caso do artista plástico Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), mais um, dentre tantos exemplos, que não experimentou a glória em vida e teve sua grandeza reconhecida apenas depois da morte.
Sempre digo que foi a paixão pela filosofia que me levou ao mundo das artes, seja como colecionador, seja como criador. Bispo do Rosário ilustra bem isto. Soube de sua obra, pela primeira vez em 2009, pouco depois que comecei minha coleção artística.
Na época, eu tinha aulas particulares com a filósofa Viviane Mosé, que vinha do Rio para minha casa, em São Paulo, onde ocorriam nossos encontros. Conversávamos muito sobre Nietzsche e, certa vez, ela teceu alguma relação entre o autor e a obra de Bispo do Rosário.
Meus olhos brilharam. A história me parecia muito interessante. Diagnosticado como esquizofrênico e paranóico, ele viveu por mais de 50 anos como interno na colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio. Foi nesse hospital psiquiátrico que criou sua obra — e sua história. Sem nenhuma informação externa, tornou-se autor de um trabalho magnânimo.
Bispo do Rosário se achava um messias, um enviado de Deus. Por meio de suas criações, sobretudo em forma de bordados, expressou aquilo que acreditava. E foi genial, em sua estética brilhante e na maneira sem igual de compor as costuras nos materiais. O trabalho de Bispo cativou minha atenção. Ele, que tinha sido boxeador e marinheiro, se tornou obcecado por formas navegatórias. Os mantos que fazia eram de uma beleza sem precedentes.
Eu andava lendo muito Michel Foucault (1926-1984). Seus livros A História da Loucura e Vigiar e Punir, inevitavelmente, me conectavam com essa atmosfera dos hospitais psiquiátricos. Combinei com a Viviane e fomos visitar Juliano Moreira. Lembro-me muito bem: o que mais me impressionou foram as paredes daquele lugar, capazes de ressoar um silêncio quase agressivo, assustador.
Reencontrei a obra de Bispo em 2013, quando seus trabalhos foram expostos na Bienal de Veneza. Estava em companhia do artista Rubens Espírito Santo e não pude deixar de observar que há uma aproximação entre ambos. Mas se Rubens é um dadaísta consciente, Bispo era um dadaísta sem nem sequer saber que o dadaísmo existia.
Nessa ocasião refleti sobre a grandeza alcançada por Bispo, apreciado internacionalmente a ponto de ser exposto na Bienal de Veneza. Infelizmente ele havia morrido mais de duas décadas atrás — jamais teve a oportunidade de conhecer o próprio sucesso.
Quatro anos mais tarde, convidei o curador Ricardo Resende para trabalhar comigo no FAMA. Ele aceitou e me contou que acumularia funções, pois tinha assumido a direção do Museu Bispo do Rosário, no Rio. Aproveitei a coincidência: pedi para revisitar a colônia Juliano Moreira e apreciei novamente a obra do artista.
O estado de conservação era muito precário. Ali, tomamos uma decisão. Viabilizei a construção de uma reserva técnica para os trabalhos de Bispo, para que tudo ficasse mais bem acondicionado, e passei a contribuir de forma sistemática para a preservação desse acervo inestimável — reconhecido, aliás, pelo Iphan como patrimônio brasileiro. Com os investimentos, até a cela onde Bispo morou, na colônia psiquiátrica, foi reconstruída.
Em um ato de generosidade, a instituição carioca nos cedeu, por empréstimo, algumas obras do Bispo. Desde então, temos o privilégio de exibi-las no FAMA. Pessoalmente, fico orgulhoso por, de um lado, ajudar a preservar os trabalhos de um artista tão importante para a cultura brasileira e, de outro, por poder exibir parte de suas criações, tornando-o mais acessível e conhecido.
*Marcos Amaro é artista plástico, colecionador e empresário. Ele também é presidente do FAMA Museu e Campo e membro dos conselhos do MAM e do MASP.