Califórnia - A pergunta é quase sempre a mesma: “Qual é a dor?”. Apesar de parecer, não se trata de um médico avaliando seu paciente. É, na verdade, o jargão mais usado e abusado pelos fundos de venture capital para avaliar se aquele determinado negócio tem deficiências que uma startup possa “curar”. Pois, se é de cura que estamos falando, o setor de health techs é o que tem atraído muita atenção no Vale do Silício.
Não à toa, gigantes da tecnologia como Amazon, Google, Apple e até Uber estão avançando sobre esse nicho de mercado cheio de “dores”. E, mais do que sanar as “doenças” e acabar com o “sofrimento”, elas estão de olho em um mercado que, nos Estados Unidos, movimenta US$ 2,8 trilhões por ano. É o que aponta uma pesquisa do Centers for Medicare & Medicaid Services (CMS).
Só em 2018, grandes companhias investiram US$ 8,1 bilhões em health startups, um aumento de 42% em comparação ao ano anterior, de acordo com o Becker's Health IT & CIO Report. “Em muitos aspectos, a medicina ainda está na idade das trevas", disse ao NeoFeed o doutor Lloyd Minor, de 61 anos, reitor da Escola de Medicina da Universidade de Stanford.
“É inadmissível que, nos Estados Unidos de 2019, ainda tenhamos que compartilhar relatórios e prontuários usando máquinas de fax. Isso não está compatível com o nível de tecnologia que temos por aí", afirma Minor.
Suas queixas são fundamentadas em pesquisas e uma delas mostra que médicos da saúde básica passam mais da metade do tempo lidando com essas burocracias, e não com o paciente diretamente. “Não conheço ninguém que tenha feito medicina para lidar com computadores e afins", diz Minor. Mas os computadores e afins estão agora ajudando a “curar as dores” do setor com tecnologias disruptivas.
Algumas delas, inclusive, estão sendo construídas bem ali no "quintal" da Stanford. Sob a tutela do Dr. Minor, médicos e pesquisadores da universidade californiana se aliaram aos engenheiros da Apple para mapear 400 mil usuários voluntários do Apple Watch. Resultados preliminares deste estudo trouxeram à tona novos dados sobre monitoramento cardíaco e incidência da fibrilação atrial, uma condição identificada em apenas 5% dos participantes.
Médicos e pesquisadores da universidade de Stanford se aliaram aos engenheiros da Apple para mapear 400 mil usuários voluntários do Apple Watch
Enquanto novos dados dessa mesma pesquisa são colhidos, outras linhas de investigação são propostas. A Uber, por exemplo, está há um ano acompanhando o avanço do Uber Health, um serviço que permite que planos de saúde agendem corridas para seus pacientes e responsáveis, cortando os custos com ambulâncias e solucionando problemas de cancelamento de consultas por inviabilidade logística.
De acordo com a Henry J Kaiser Family Foundation, uma Organização Não Governamental (ONG) focada em problemas da indústria de saúde nos Estados Unidos, o mercado de transporte médico não-emergencial movimenta US$ 3 bilhões por ano.
Para oxigenar ainda mais o setor, a Amazon se associou a Berkshire Hathaway, do investidor Warren Buffet, e o banco JPMorgan Chase para lançar um plano de saúde próprio. No ano passado, foi às compras e levou a startup PillPack por cerca de US$ 1 bilhão. A empresa, fundada em 2013, é uma farmácia inteligente e sua proposta é mais do que apenas vender os medicamentos prescritos a cada usuário. A ideia é fazer isso de forma organizada e pré-embalada, separando os comprimidos por dia e hora, de acordo com as receitas médicas.
Outra ambição da Amazon é comercializar, em breve, softwares capazes de ler prontuários e relatórios médicos – algo que o Dr. Minor e outros especialistas aguardam ansiosos.
A Alphabet, holding que controla o Google, preferiu focar suas iniciativas em pesquisas, mas ainda caminhando no terreno da tecnologia. Depois de "emancipar" a Verily Life Science, que antes era uma divisão do Google e agora é uma empresa independente, a Alphabet se associou a diferentes companhias e centros de pesquisas para monitorar diversas doenças.
Com a Gilead, por exemplo, tem pesquisado falhas no sistema imunológico para desenvolver algoritmos capazes de prever doenças cardíacas. Já com a ResMed, tem desenvolvido mecanismos para combater a apneia do sono. Do outro lado do balcão, o Google Brain usa inteligência artificial com reconhecimento de voz para ajudar médicos a tomarem notas durante consultas. Num futuro próximo, a meta é conectar todas as informações a assistentes pessoais e, assim, facilitar a vida do paciente.
Novos agentes
Uma rápida radiografia da área de health tech é suficiente para identificar a alta incidência de unicórnios, empresas avaliadas em mais de US$ 1 bilhão. Só no ano passado, sete startups se juntaram ao "rebanho". Entre elas estão a Peloton, uma empresa de exercícios, avaliada em US$ 4,1 bilhões; a 23andme, uma startup de genoma pessoal e biotecnologia, avaliada em US$ 2,5 bilhões; a Tempus, que analisa dados moleculares e clínicos, avaliada em US$ 2 bilhões; a ZocDoc, de agendamento médico, também avaliada em US$ 2 bilhões.
Uma das mais proeminentes do grupo é uma empresa de Utah, a Health Catalyst, avaliada em US$ 1 bilhão. A companhia desenvolveu uma plataforma que cruza e unifica dados de pacientes. Com a ajuda de inteligência artificial, reúne informações que estão nas mãos do médico, do plano de saúde e do laboratório de análises clínicas em um único documento.
Um exemplo de produto desenvolvido pela Health Catalyst em ação pode ser visto no Hospital El Camino, em Mountain View, na Califórnia. Embora o atendimento ali tenha sido sempre exemplar, os responsáveis confessavam a complexidade de implementar um sistema multinível que pudesse ser útil na progressão do paciente até sua alta, bem como a dificuldade de identificar os principais fatores que colaboram para uma internação prolongada.
Depois de cruzar diferentes informações providas pelo hospital, a equipe da Health Catalyst conseguiu desenvolver um sistema que mapeava os pacientes com maiores chances de prolongar a internação, e traçava algumas alternativas de intervenção. Isso levou a uma economia de US$ 2,2 milhões por ano e a redução de 14,5% na taxa de readmissão.
Efeito colateral
Embora haja esforços reais para solucionar alguns dos problemas mais comuns relacionados à saúde mundial, são muitas as razões pelas quais o sistema se mantém assim. "Não é lá muito interessante para planos de saúde e serviços do gênero que seus pacientes tenham seus dados tão facilmente transportáveis e transmissíveis”, diz o dr. Minor.
O motivo do “atraso” é bem claro. “Se você é uma empresa de plano de saúde, o incentivo no atual sistema americano é para que 'prenda' o usuário em sua rede, evitando evasão de cliente para outros concorrentes – e uma das formas mais eficazes de retenção é justamente dificultar o avanço de coisas como o prontuário digital.”
Para quem pensa que a tecnologia vai substituir os médicos, o reitor de Stanford tem a resposta pronta. "Sou daqueles que acredita que, quanto mais tecnologia, maior a conexão; e sei, por um estudo próprio, que a maioria das pessoas ainda opta por se consultar com um profissional de carne e osso, mesmo tendo máquinas disponíveis."
As máquinas, diz ele, ajudarão cada vez mais na prevenção. "Se pensarmos na saúde como um todo, apenas 30% dos problemas estão ligados à nossa genética e cuidados médicos, os outros 70% são representados por comportamentos e ambientes sociais. Um fato muito triste dos EUA atual é que o fator mais preciso de previsão de expectativa de vida é o CEP em que a pessoa vive, e não seu DNA", diz Minor.
E esse já conhecido abismo de atendimento médico pode ser, de novo, preenchido com tecnologia. "Temos visto já alguns exemplos disso em prática, como os drones que levam remédios para zonas remotas, em países em desenvolvimento. O mundo está ficando mais conectado. São muitas as formas pelas quais a tecnologia vai democratizar e melhorar a qualidade da saúde e do sistema de saúde no mundo", diz Minor. Qual é mesmo a sua dor?
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