Em março de 2020, quando a Covid-19 começou a mostrar suas credenciais, praticamente todas as portas se fecharam para o mercado de eventos. Congressos, feiras, palestras, shows e até mesmo o networking tornaram-se virtuais. Mas não foram capazes de conter a queda brutal nas receitas do setor.

Ainda não é possível vislumbrar uma volta à normalidade nesse calendário. Mas isso não impediu que a francesa GL events, um dos principais nomes dessa indústria, fizesse uma aposta ousada e saísse vencedora na licitação para administrar o Complexo do Anhembi, em São Paulo, nos próximos 30 anos.

Prestes a assinar o contrato da concessão, que envolveu uma outorga fixa anual de R$ 53,7 milhões, o grupo revelou com exclusividade ao NeoFeed os detalhes de um plano ambicioso que, além da modernização do Anhembi, inclui a criação de um minibairro no entorno das instalações do complexo e um aporte de mais de R$ 1 bilhão nos próximos cinco anos.

“O interesse no Anhembi é anterior à crise e nossa crença sobre esse mercado não mudou”, diz Damien Timperio, CEO da GL events na América Latina. “O setor vai voltar e São Paulo está carente de um distrito de entretenimento, de experiência e de eventos.”

A executiva Milena Palumbo, CEO da GL events no Brasil, ressalta o que tanto chamou a atenção do grupo no ativo. “O Anhembi é gigante e único”, afirma. “Não existe lugar igual em nenhuma megalópole do mundo com esse potencial em termos de eventos, tamanho e diversidade dentro de um único espaço.”

Listado na Bolsa de Paris e avaliado em € 427,7 milhões, o novo “inquilino” terá sob gestão uma área de 382,5 mil metros quadrados, que hoje inclui o Pavilhão de Exposições, o Palácio das Convenções e o Sambódromo.

A GL events já busca parceiros para ajudar a financiar, operar e tornar possível justamente a parte do projeto que envolve outras estruturas além daquelas destinadas aos eventos. Ainda em fase final de estudos, o leque no balcão é amplo.

Uma das opções é um hub voltado à indústria criativa. O espaço contará com um coworking e estúdios para produções como filmes, séries, publicidade, streaming e games, nos moldes da estrutura que o grupo mantém na gestão do Riocentro, no Rio de Janeiro.

O plano também prevê a construção de um hotel com cerca de 220 quartos para os visitantes das feiras. E um empreendimento residencial long stay, com apartamentos para locação mobiliados e atrelados a um pacote de serviços.

Damien Timperio, CEO da GL Events na América Latina

No minibairro, outra ideia é erguer um hospital geral ou especializado, com até 250 leitos. De um lado, a intenção é ampliar o número de leitos disponíveis na região, hoje na casa de 1,1 por mil habitantes. O número considerado ideal pela Organização Mundial da Saúde é de 3 a 5 leitos.

Ao mesmo tempo, o hospital segue a orientação de conectar todos os ativos com o espaço de eventos. “Hoje, o principal uso do centro de convenções são os congressos da área médica”, diz Timperio.

O distrito contempla ainda um centro de compras, gastronomia e lazer, com até 30 mil metros quadrados de área bruta locável. “É um grande diferencial ter todo esse ecossistema dentro do mesmo espaço, em uma cidade como São Paulo”, afirma Milena. “Isso nos coloca em vantagem competitiva para captar grandes congressos e feiras.”

Atração de investimentos

Na área de eventos, o plano passa, por exemplo, pela ampliação do Palácio das Convenções. A ideia é ter uma área de 50 mil metros quadrados, com capacidade para até 15 mil pessoas. Já o espaço destinado às feiras B2B e B2C terá melhorias em áreas como climatização e segurança.

Um dos grandes focos, porém, é o Sambódromo. O plano é erguer uma arena indoor de 50 mil metros quadrados atrelada a essa estrutura, com capacidade para 20 mil pessoas, e explorar um calendário mais amplo de eventos, além do Carnaval.

“O Sambódromo tem um potencial gigantesco em vários perfis de eventos de entretenimento”, diz Milena. “No médio prazo, esse será um dos nichos que iremos desenvolver.”

Assim como já vem acontecendo na busca por parceiros nos projetos do distrito, a GL deu início às conversas para a venda do naming rights da nova arena multiuso do Sambódromo. Esses dois processos, porém, tem desafios pela frente, especialmente no que diz respeito ao investimento estrangeiro.

“Questões como a vacinação e as intervenções recentes na Petrobras e no Banco do Brasil tiram a credibilidade do Brasil mundo afora”, diz Armando Rovai, professor do Mackenzie. “Isso prejudica o ambiente de negócios e afasta o investidor.”

Timperio reconhece que não será uma missão fácil. “Tenho passado mais tempo fora do País e, no momento, a percepção de fato não é positiva”, diz, citando a pandemia e a crise política como entraves. “Mas estamos conversando com parceiros que veem o longo prazo e, nesse cenário, o Brasil, e especificamente São Paulo, seguem muito relevantes.”

A expectativa é divulgar os primeiros acordos no início do segundo semestre. Eles podem envolver desde coinvestimento até a cessão total para a exploração dos ativos pelos parceiros.

O grupo projeta um impacto anual de R$ 5 bilhões na economia da capital paulista com o projeto em operação

Já nos aportes que cabem ao grupo, na modernização da área de eventos, o prazo para concluir os projetos é de quatro anos, a partir da assinatura do contrato da concessão.

Ao fim desse período, a GL events estima uma receita anual de R$ 250 milhões com os eventos. Já em termos dos negócios gerados nesse calendário, somados à operação do distrito, a projeção é de um impacto anual de R$ 5 bilhões na economia da capital paulista.

Inspiração

Guardadas as devidas particularidades e proporções, o projeto proposto pela GL events encontra paralelos no exterior, com áreas que se desenvolveram nos arredores de centros de eventos.

É o caso do L.A. Live, em Los Angeles. O projeto foi desenvolvido pelo Anschutz Entertainment Group (AEG), holding de esportes e entretenimento, tendo como base o Staples Center, arena multiuso palco de eventos como os jogos do time de basquete do Los Angeles Lakers.

Com mais de 500 eventos e 20 milhões de visitantes por ano, o L.A. Live conta ainda com instalações como o Microsoft Theater, estúdios da ESPN, escritórios, hotéis, centro de convenções, museus, restaurantes e cinemas.

A AEG tem projetos semelhantes em Berlim, na Alemanha, com o distrito Mercedes Platz, próximo à Mercedes-Benz Arena. E em Londres, com o O2, nos arredores da O2 Arena.

No Brasil, essas iniciativas foram a inspiração para a Cidade da Copa, em São Lourenço da Mata (PE). Capitaneado pela Odebrecht, o projeto estaria atrelado a Arena Pernambuco, construída para a Copa do Mundo de 2014. Mas, diante dos escândalos envolvendo a construtora, nunca saiu do papel.

No universo da GL events, há projetos de menor porte, em cidades como Lyon, na França, que abriga a sede do grupo. “Nós temos 51 centros de eventos no mundo”, diz Milena. “Mas o projeto do Anhembi é o primeiro com essa envergadura e diversidade.”

Milena Palumbo, CEO da GL Events no Brasil

Além do Riocentro e, agora, do Anhembi, a GL Events responde no Brasil por espaços como a arena multiuso Jeunesse, no Rio de Janeiro, a São Paulo Expo, o Santos Convention Center e o Centro de Convenções de Salvador. E por eventos como a Bienal Internacional do Livro carioca.

A aposta no Anhembi ressalta a importância da subsidiária no mapa da companhia, presente em 27 países. A operação local responde, em média, por 7% a 10% da receita global. E até pouco tempo, antes de ser superada pela China, era a segunda maior da empresa, atrás apenas da França.

O projeto do Anhembi ganha ainda mais relevância sob os reflexos da Covid-19 no resultado da GL events. Em 2020, a receita do grupo caiu 59,1%, para € 479,3 milhões. A empresa viu suas ações recuarem 56,9% em 2020. Neste ano, porém, os papéis acumulam alta de 45%.

A pandemia também trouxe sérios impactos para o mercado de eventos no Brasil. A Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (Abrape) estima que, em 2020, o setor registrou uma queda de cerca de 70% sobre a cifra movimentada em 2019, de R$ 75 bilhões.

“Nossa matéria-prima é a aglomeração e ela está proibida. Mas a demanda não deixou de existir”, diz Doreni Caramori, presidente da Abrape. “E, diferentemente da indústria, nosso setor tem capacidade de dar uma resposta muito rápida quando a vacinação avançar e a retomada acontecer.”