Peça ao Bira para descrever a luva biônica que devolveu o maestro João Carlos Martins ao piano e o relato virá de forma simples e objetiva, como simples e objetivo é o próprio Bira. Assim: “O que eu fiz foi uma luva mecânica. Adaptei a ela uma lâmina de aço, baseada no princípio de feixe de mola, que fez com que os dedos do maestro tivessem o movimento necessário de toque e recuo sobre as teclas. Resumindo, é isso.”
Coloquemos de uma outra forma, então, para fazer justiça à dimensão do invento e ao talento do inventor. Próximo de completar 80 anos de idade, mais de 60 de carreira, o pianista e maestro João Carlos Martins, depois de 24 cirurgias na mão, fruto de acidentes e distúrbios osteomusculares, volta a tocar piano com as duas mãos graças a devoção de um designer industrial da cidade de Sumaré que, ao vê-lo num programa de TV se despedindo do instrumento, cismou de ajudá-lo.
A combinação de empatia, trabalho árduo de pesquisa e desenvolvimento e uma impressora 3D se encarregou de produzir um equipamento capaz de devolver ao maestro a habilidade de movimentar os dez dedos sobre as teclas, depois de 22 anos de limitações.
Uma habilidade que João Carlos Martins mostrará no Carnegie Hall, em outubro deste ano, no concerto “From Bach to Brasil”, que marcará seu octagésimo aniversário. Quando puxar o banquinho e se sentar ao piano para executar a Sinfonia Nº 1 de Bach, ele terá a companhia de Bira, sob a forma de uma luva negra com ligas de aço deslizando sobre as teclas.
Um equipamento que o designer - e o pianista também - torcem para que ganhe em breve escala industrial, de modo a ajudar mais pessoas. “Não tenho palavras para descrever o que senti quando vi as luvas. Vesti o equipamento, fui ao piano e me emocionei. Agradeço ao Bira por ter aparecido em minha vida”, disse o maestro no programa Altas Horas, de Sérgio Groisman, na Globo.
Bira é Ubiratan Bizarro Costa, designer industrial, de 55 anos, filho de uma professora de música e de um dublador da Herbert Richers, pai de duas filhas e fã de Fórmula 1 - chegou a escrever sobre o assunto em revistas especializadas. Nasceu em São Paulo, passou a adolescência e juventude em Campinas e vive atualmente na cidade de Sumaré - a quase duas horas da capital.
Começou a carreira em agências de publicidade, mas logo percebeu que era melhor trabalhar por conta, oferecendo seus serviços para marcas dispostas a repaginar a identidade visual, produtos e embalagens. Hoje, divide seu tempo entre as aulas em sua escola de design industrial, a Traço Bizarro, gerenciada pela esposa Silvia, e o escritório de design que atende empresas, geralmente multinacionais, sobretudo montadoras de automóveis.
Orgulha-se de um ter feito para a Mitsubishi o CD Player presente em todas as picapes da montadora, além dos trabalhos para Ford, GM e outras gigantes do setor . Também tem especial carinho pelos projetos que desenvolveu para a Fórmula 1.
Um deles, o PCP, Proteção para Cockpit, chegou a ser apresentado à FIA - a federação da categoria - mas acabou engavetado. “Anos depois, surgiu um outro produto, muito similar ao meu, que se tornou obrigatório na categoria. Acho que cheguei cedo demais com a novidade para a FIA. Paciência”, diz Bira.
Mas ainda hoje, a F1 o inspira. A lâmina de aço que faz os dedos do maestro subirem depois de tocar as teclas surgiu da lembrança de componentes e mesmo da dinâmica usados na suspensão traseira da escuderia Mercedes.
Nos últimos anos, Bira decidiu levar todo esse conhecimento de aerodinâmica e mobilidade a uma nova área do design, que batizou de Design Inclusivo. Nada mais é do que fazer a sua própria versão - mais barata - de equipamentos que podem ajudar quem tem algum tipo de deficiência.
“O segredo é substituir materiais mais caros e simplificar o funcionamento do aparelho para criar algo razoável para o bolso do usuário”, diz Bira. “É o conceito de mínimo produto viável, tão usado nas empresas. Eu sou adepto do design minimalista, o mínimo de peças que fazem o máximo de função”.
Foi assim que surgiu um exoesqueleto mecânico para ajudar pessoas com limitação ou sem qualquer mobilidade nas pernas. “O que existe no mercado são aparelhos eletrônicos, movidos por sistemas complexos, com motor. São produtos que custam cerca de 150 mil dólares", diz ele.
"Eu desenhei e desenvolvi um equipamento mecânico que aproveita a movimentação das costas do usuário para girar a engrenagem e ajudá-lo a dar alguns passos. Ao retirar a necessidade do motor, o preço cai drasticamente. Eu diria que, em escala industrial, o meu aparelho chegaria a ponta final custando 7 mil reais.”
Nessa mesma linha, Bira criou a B-UP, uma scooter que permite a uma pessoa sem mobilidade não apenas se movimentar como também levantar o corpo. “Tem a mesma função do exoesqueleto e é ainda mais barata”, diz ele.
Foi o design inclusivo que fez com que Bira prestasse atenção no caso do maestro. “Eu consegui levantar um corpo, fazer um exoesqueleto. Por que não poderia fazer o mesmo com dedos?” Poderia. E fez.
Para chegar o modelo ideal, Bira viu centenas de vídeos antigos do maestro - época em que João Carlos Martins era capaz de tocar 21 notas por segundo, um dos mais rápidos pianistas do mundo, tão veloz quanto um F1.
O designer passou cinco dias com os olhos grudados no Youtube. Play. Pausa. Calcula, desenha. Play. Pausa. Outro rascunho, medições… Até ter o tamanho exato das mãos do maestro, as dimensões corretas para começar a produzir um protótipo.
“Eu consegui levantar um corpo, fazer um exoesqueleto. Por que não poderia fazer o mesmo com dedos?”
Desenhada a mão, ele foi, então, aos vídeos novos, do maestro tocando com os polegares - agora eram 21 segundos para fazer uma nota. “Achei que ele não conseguia abrir as mãos e fiz um modelo partindo dessa premissa”, conta o Bira. Nesse primeiro modelo, usou ABS (uma resina termoplástica) no chassi e plásticos nas tiras responsáveis pelo movimento dos dedos.
O designer conta que o chassi é feito em camadas na impressora 3D - “minha maior aquisição”, diz - e leva três hora e meia para ficar pronto. Quando sai do ‘forno’, o produto recebe as tiras de plástico, que se estendem do meio da luva até a ponta dos dedos - como se fossem um combinação de metacarpo e falanges plastificados. Produzida a estrutura, Bira costura a luva sob a engrenagem.
Protótipo feito, faltava encontrar o maestro. Tentativas de conexões, ligações, e-mails… e nada. Até que houve o aniversário de Sumaré, em junho de 2019. Festa na cidade, com apresentação da Bachiana Filarmônica sob a regência de João Carlos Martins.
Era a chance de Bira. Um amigo de um amigo de um músico da orquestra fez com que o nome do designer chegasse aos ouvidos do maestro. Veio o recado dos organizadores do evento: “apareça nos fundos do teatro que o maestro vai te receber”.
E lá foi o Bira no horário e local combinados , levando o par de luvas dentro de uma caixinha de madeira, com a esperança de, finalmente, ver o maestro se reconciliar com as mãos. Esperou quinze minutos que pareciam uma eternidade. “Pode entrar”, alguém avisou.
Bira bateu à porta do camarim e entrou na história de João Carlos Martins.
O telefone tocou dias depois. O maestro o convidava para almoçar. “Foi quando eu descobri que o primeiro protótipo não serviu de nada”, diz Bira, rindo de si mesmo. “Sempre educado, o João Carlos deu a notícia da inutilidade do primeiro modelo assim: ‘meu problema não é exatamente abrir a mão. A questão é que os dedos, se descem ao teclado, não sobem de volta’”.
O que se deu, a partir daí, foi uma parceria de sete meses entre maestro e designer para que se chegasse ao modelo perfeito. “Foi o encontro de dois perfeccionistas. Discutimos detalhes do produto e trabalhamos intensamente até ficar redondo”.
Foi assim, por exemplo, com a liga de aço inspirada na F1. O material anterior, de plástico, não era resistente o bastante, pois o maestro utiliza a luva o dia inteiro. Os movimentos de dedilhar as teclas causavam uma certa fadiga no material.
Outro ponto: para cada dedo, o maestro sugeria uma força diferente de “repuxo”. “Tivemos de estudar dedo por dedo. Foi uma luva altamente customizada”, conta Bira. “O maestro me diz que até a circulação sangüínea na região melhorou, pois pode movimentar mais as mãos”.
“Tivemos de estudar dedo por dedo. Foi uma luva altamente customizada”, conta Bira. “O maestro me diz que até a circulação sangüínea na região melhorou, pois pode movimentar mais as mãos”
Ele trabalha agora em um modelo genérico para ajudar aqueles que por algum motivo tenham perdido a mobilidade das mãos.
Dias antes desta entrevista, Bira havia recebido um email de uma pianista francesa pedindo uma luva, pois tinha problemas semelhantes aos do maestro. Pessoas que tiveram acidente vascular cerebral ou distonia muscular também têm procurado o designer.
“Hoje, o custo de um par de luvas seria, contando o material e a mão de obra, de cerca de R$ 1,6 mil a R$ 2 mil. Se pudesse ser feito em série, em escala industrial, esse preço cairia para R$ 900”.
Até aqui, só um fundo de investimento o procurou, mas a negociação não foi em frente. “Tudo bem, uma hora alguém aparece, disposto a investir no design inclusivo”. Sim, uma hora alguém aparece. Como Bira apareceu na história da João Carlos Martins.
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