Criado pelo governo federal em agosto, o Programa “Remessa Conforme” nasceu com a importante missão de combater a sonegação fiscal das plataformas internacionais de e-commerce, especialmente as chinesas.
O que era para ser uma boa iniciativa, contudo, acabou não cumprindo sua missão original. A isenção do imposto sobre importação na compra de produtos de até US$ 50 criou uma indefensável desigualdade entre o varejo têxtil nacional e os sites do exterior.
Enquanto as varejistas têxteis brasileiras enfrentam uma carga tributária que chega a 80% em sua cadeia de valor, as plataformas estrangeiras aproveitam os generosos subsídios que começam em seus países de origem e prosseguem em território brasileiro.
Atenta ao problema, a Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTex) tem defendido, em reuniões com o Ministério da Fazenda, a isonomia tributária que faria o setor competir em condições de igualdade com concorrentes de outros países.
“A falta de isonomia significa concorrência desleal”, diz Edmundo Lima, diretor-executivo da ABVTex. “Se o governo brasileiro reduzisse o valor dos impostos, nós poderíamos oferecer produtos tão ou até mais baratos do que os importados.”
A competição desigual, de fato, atinge em cheio o setor. De janeiro até setembro, segundo dados do IBGE, a produção de vestuário acumula perda de 10% em relação ao mesmo período do ano passado. E isso com um PIB que cresce ao ritmo de quase 3% ao ano.
A atividade têxtil é vital para a economia brasileira. Ela emprega perto de 2 milhões de pessoas, o que a torna uma das campeãs na geração de postos de trabalho no país.
Na entrevista a seguir, Lima fala sobre os desafios enfrentados pelo varejo têxtil, explica por que a isonomia tributária é tão necessária e detalha os riscos para a saúde dos consumidores (inclusive crianças) e para o meio ambiente que os produtos das plataformas internacionais podem trazer para o Brasil. Confira:
Qual é a sua avaliação do projeto Remessa Conforme?
O Remessa Conforme é um projeto importante da Receita Federal para garantir compliance e regularidade nas operações dos e-commerces internacionais. Com ele, as plataformas são obrigadas a declarar informações de seu fluxo, como a origem do produto, o valor, quem é o comprador e o vendedor. Isso é positivo, já que esses dados permaneciam ocultos, o que permitia fraudes nas transações comerciais entre uma empresa internacional e um consumidor brasileiro.
Que tipo de fraude?
Antes, as encomendas vinham para cá como se fossem de uma pessoa física residente no exterior para uma pessoa física residente no Brasil, em um processo isento do imposto de importação até o limite de US$ 50. Agora, esses produtos passaram a ser trazidos regularmente, com registro na Receita Federal e pagamento de um único imposto, o ICMS, de 17%.
Procedem os relatos de empresas que driblam as normas do Remessa Conforme?
A Receita Federal já vem identificando fraudes no sistema Remessa Conforme. Alguns produtos chegam ao Brasil desmontados para que o consumidor monte em casa e, com isso, não supere o patamar dos US$ 50 para cada remessa. Também notamos o parcelamento de remessas e vendas ilegais de cupons de desconto. Existem inclusive vídeos nas redes sociais que ensinam como fraudar o fisco para que as mercadorias sejam vendidas dentro do limite de US$ 50. Um deles mostra justamente como, comprando o cupom de desconto, o preço da mercadoria torna-se inferior a US$ 50.
Mesmo com os relatos de fraudes ao Remessa Conforme, os e-commerces internacionais inscritos no programa seguem com a vantagem tributária de pagar apenas o ICMS. Isso não torna os produtos destes sites irresistíveis para o consumidor brasileiro?
Esse é o ponto. Quando o consumidor busca um produto barato nas plataformas, ele precisa ter em mente que isso vem justamente da falta de isonomia tributária. As empresas internacionais, especialmente as chinesas, recebem subsídio do governo para a produção local, além de subsídio para a exportação. Quando chegam o Brasil, as mercadorias ainda desfrutam do benefício do governo com a isenção de imposto de importação até o valor de US$ 50, o que equivale a aproximadamente R$ 250. Para se ter ideia, o ticket médio do varejo nacional é de R$ 180. A falta de isonomia, portanto, significa uma concorrência desleal.
Qual é a carga que incide sobre o varejo têxtil?
Quando você avalia toda a cadeia de valor, a nossa carga tributária é de cerca de 80%, uma discrepância que não faz sentido. É por isso que buscamos sensibilizar o governo sobre como trazer isonomia e igualdade de condições entre o varejo nacional e as plataformas internacionais. Se o governo brasileiro reduzisse o valor dos impostos, nós poderíamos oferecer produtos tão ou até mais baratos do que os importados.
Que tipo de controle deveria haver sobre os produtos importados vendidos nas plataformas de e-commerce?
Uma questão importante diz respeito à qualidade dos produtos. Ela fica dramaticamente prejudicada, porque não há nenhum tipo de verificação da mercadoria por parte do governo brasileiro. Não dá para saber se o produto cumpre as normas existentes no Brasil, ou se vai trazer algum tipo prejuízo, seja em termos de saúde ou em relação ao meio ambiente.
Não há nenhum tipo de verificação?
Zero. Não há verificação da Anvisa, do Inmetro ou de outros órgãos fiscalizadores. Vou dar um exemplo concreto. No Brasil, você tem uma norma que regulamenta a etiquetagem das peças de roupas em que é preciso informar a composição têxtil do produto, a origem, os cuidados com lavagem e manutenção. Essas informações devem estar escritas em português. Muitas vezes, as plataformas internacionais não cumprem essas regras obrigatórias. As informações estão em inglês ou chinês, e isso quando são fornecidas.
Isso compromete a segurança do produto?
Claro, não dá para saber se esses produtos atendem às normas de saúde e segurança do consumidor. Será que usam em seu processo de fabricação substâncias químicas restritas no Brasil? Será que utilizam, durante o tingimento das roupas, produtos que colocam em risco a saúde do consumidor e do meio ambiente? Na medida em que essas peças são lavadas, certamente há o descarte de substâncias químicas, que podem degradar rios, por exemplo. Tudo isso precisa ser verificado, mas não é.
Não há verificação sequer de roupas infantis?
No Brasil, nós devemos cumprir procedimentos que garantem a segurança das peças para crianças, mas as plataformas internacionais passam ao largo dessas regras. Isso é grave. Um capuz infantil não pode ter um cordão que leve ao enforcamento da criança. As roupas não podem ter adereços ou aviamentos que soltam facilmente e poder ser engolidos. Tudo isso é muito sério, mas as plataformas internacionais não se sujeitam a essas normas.
Você conhece algum caso concreto de e-commerce que foi flagrado por não cumprir exigências no país de destino do produto?
Na Alemanha, um teste feito no final de 2022 pelo Greenpeace descobriu que uma parte de um lote de vestuário vendido pela Shein não cumpria as normas sobre uso de produtos químicos da União Europeia, mas certamente há muitos outros casos.
O que a ABVTex tem feito para mudar esse quadro?
Temos insistido com o governo para que exija dos órgãos responsáveis que exerçam a fiscalização necessária. Apesar de complexo, é algo fundamental que seja realizado. O governo está sensível a essa questão.
Como outros países têm lidado com a concorrência das plataformas chinesas?
Esse é um tema central nas discussões do mercado, tanto nos países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. Os Estados Unidos vêm discutindo uma legislação específica para isso e identificando sites que usam mão de obra análoga à escravidão. Na Europa, países como Alemanha e Inglaterra estão reforçando as investigações. Os governos vêm buscando desenvolver políticas públicas que tratem dessa questão, seja a falta de isonomia, ameaças à saúde do consumidor ou ao meio ambiente. É preciso colocar parâmetros de controle. No Canadá, o limite máximo de isenção a importados é de US$ 20; na Noruega, país de maior IDH do mundo, de US$ 30. Nos países emergentes, já houve uma reação. Na Indonésia, o valor máximo de isenção a importados caiu para US$ 3, razão pela qual o principal site internacional de vestuário deixou o país. Na Rússia, o limite é de US$ 10, mesma restrição vigente, vejam que interessante, que vigora na própria China. África do Sul e Argentina não tem mais isenção a importados.
No Brasil, essa questão parece ser ainda mais urgente...
Dou um exemplo que tem a ver com o momento que vivemos agora. Observamos um mês inteiro de promoções agressivas para a Black Friday nas plataformas internacionais de e-commerce. Elas oferecem isso porque contam com os benefícios e isenções fiscais. Isso acaba drenando recursos do consumidor do produto nacional para o produto importado, exportando empregos no Brasil para mercados estrangeiros. Essa é uma preocupação, mas acreditamos num final de ano positivo.
O que explica o otimismo então?
Nós tivemos uma reunião com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para discutir o problema. Ele assegurou a um grupo de empresários do setor que uma solução de isonomia seria desenvolvida pelo governo até o final do ano. Essa é a nossa expectativa. Acreditamos no bom senso do governo.