A proposta de revisão tarifária dos gasodutos de transporte, válida para o período de 2026 a 2030, apresentada à Agência Nacional do Petróleo (ANP) pela AtGás - que representa as transportadoras de gás natural -, abriu uma crise sem precedentes no setor.

A polêmica gira em torno de que a proposta das transportadoras de gás natural pode elevar tarifas em até 20% ante a expectativa de redução para 5%, conforme alegam distribuidoras, Petrobras e grandes consumidores, que acusam as transportadoras de falta de transparência, critérios questionáveis e risco de judicialização.

Elas denunciam uma ameaça de duplicidade de remuneração por gasodutos construídos há anos e que já tiveram amortização, uma conta que pode chegar até R$ 20 bilhões, levando em conta contratos futuros das transportadoras, com eventual repasse de custos para outros elos da cadeia.

Segundo o Conselho dos Usuários – criado pela Nova Lei do Gás, de 2021, e encarregado de monitorar o desempenho, eficiência e investimentos dos transportadores de gás natural –, a proposta da AtGás utilizou um critério não reconhecido para a valoração da Base Regulatória de Ativos (BRA) dos transportadores.

Até a Petrobras entrou na briga. Em audiência no mês passado no Senado, o gerente-executivo de Gás e Energia da estatal, Álvaro Tupiassu, afirmou que a Petrobras estima que mais de 90% dos ativos das malhas Sudeste e Nordeste, que vencem ao fim do ano, já foram amortizados – e que a BRA desses ativos totaliza R$ 600 milhões.

O questionamento da metodologia apresentada pela AtGás para sugerir a revisão tarifária é apenas um aspecto do problema. Outro, mais complexo, é processual e envolve a mudança regulatória do mercado de gás em discussão pela ANP por meio de duas consultas públicas.

O drama é que as duas consultas públicas, que tratam de temas correlatos à revisão tarifária, são discutidas em paralelo, com calendários diferentes.

A Consulta Pública nº 5, por exemplo, discute uma nova resolução com os critérios para cálculo das tarifas de transporte de gás natural e o processo de aprovação das tarifas propostas pelas transportadoras. Já a Consulta Pública nº 8 debate objetivamente as tarifas de transporte de gás natural para o ciclo regulatório 2026–2030.

Por isso, o Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), que integra o Conselho de Usuários, pediu o adiamento da consulta pública da revisão e sugere a adoção de uma tarifa provisória, até que todos os temas tenham uma decisão da ANP.

O processo de revisão tarifária das transportadoras é o primeiro de grande porte desde a Nova Lei do Gás, que incluiu novas regras tarifárias. Antes, as normas para a atividade de transporte de gás eram baseadas na Lei nº 11.909, de 2009. Em 2014, a ANP editou a Resolução nº 15, de 2014, estabelecendo critérios para o cálculo das tarifas - incluindo revisões periódicas a cada cinco anos.

No meio dessas mudanças regulatórias dos últimos 15 anos, o mercado de gás passou por grande transformação, com a venda de dois grandes gasodutos por parte da Petrobras. A Nova Transportadora do Sudeste (NTS) foi adquirida em 2016, por cerca de R$ 16,6 bilhões, pelo consórcio liderado pela canadense Brookfield.

A TAG (Transportadora Associada de Gás) foi arrematada em 2019 por R$ 36 bilhões por um consórcio formado pela Engie e pelo fundo canadense Caisse de dépôt et placement du Québec (CDPQ). Juntamente com a Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia Brasil (TBG), as três gigantes são responsáveis por mais de 90% da malha de gasodutos do País, de 9.500 km.

Depreciação

Para Marcos Lopomo, diretor econômico-regulatório da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), o mercado esperava uma redução tarifária porque os ativos do segmento de transporte, com poucos investimentos nos últimos 15 anos, deveriam estar quase totalmente depreciados. E, portanto, deveriam ser removidos da base tarifária.

Segundo ele, os ativos a serem depreciados são os utilizados no serviço, como os dutos. Nos contratos legados, planilhas de cálculo de tarifas visavam pagar o investimento nesses ativos.

“A análise dessas planilhas, divulgadas em meados do ano, mostra que os investimentos foram em grande parte pagos, com consultorias estimando uma depreciação superior a 90%”, diz Lopomo.

“As transportadoras propõem um critério de depreciação diferente, baseado na vida útil e não no pagamento econômico, o que levaria a uma dupla remuneração de ativos já pagos”, acrescenta.

Apenas para os contratos das Malhas Nordeste e Malha Sudeste, Lopomo diz que a diferença é de cerca de R$ 8 bilhões a R$ 9 bilhões.

Rogério Manso, presidente da AtGás, rebate de forma enfática os cálculos apresentados pela Abegás e outras entidades do setor, que criticaram a proposta das transportadoras de gás.

Ele contesta a origem e a validação formal de planilhas apresentadas pela Abegás e outras entidades, afirmando que não foram referendadas dentro do processo e se utilizam de critérios subjetivos que podem gerar uma "guerra de narrativas".

Manso diz que o critério adotado para a revisão tarifária não foi uma “escolha de conveniência”, mas um padrão objetivo, auditável e universal, já utilizado pela ANP, por outras agências e internacionalmente.

“As transportadoras submeteram à ANP análises por dois critérios objetivos - Custo Histórico Corrigido e Custo de Reposição Novo - e os valores dos ativos já constavam em anexos de contratos de venda da Petrobras, referendados pela agência, buscando aderência a um processo estruturado”, assegura Manso.

Neste sentido, alega, o cálculo correto, baseado na vida útil, resulta em uma depreciação de cerca de dois terços (66,6%) para um ativo com 20 anos de operação e 30 de vida útil, restando um terço a ser remunerado.

Alvo de críticas pela condução do processo de intermediação, a diretora-geral da ANP, Symone Araújo, afirmou esta semana que a agência está “bastante firme” na decisão de conduzir simultaneamente a revisão tarifária das transportadoras de gás natural e a revisão da Resolução 15/2014, destacando que isso traz mais segurança e previsibilidade ao setor.

Ela defendeu que os dois processos — revisão tarifária e atualização da resolução que define os critérios de cálculo — devem ocorrer em paralelo.

“Isso não representa um risco, mas sim uma forma de garantir segurança regulatória”, afirmou, acrescentando que a ANP trata o tema com “absoluta prioridade” e pretende concluir as duas ações — revisão tarifária e atualização da resolução — até o fim do ano.

Em nota, a Petrobras afirma que a análise da Petrobras citada pelo gerente-executivo Álvaro Tupiassu tomou por base as memórias de cálculo originais das tarifas de transporte dos referidos contratos de transporte, tornadas públicas pela ANP.

A estatal, porém, evitou entrar em atrito com a ANP: “Entendemos que as duas consultas públicas constituem os fóruns adequados para o recebimento pela ANP das contribuições acerca do tema."