Com o colega Pérsio Arida, André Lara Resende foi um dos responsáveis pelas soluções heterodoxas que garantiram, no começo dos anos 90, o sucesso do Plano Real, que, até então, os economistas, inclusive a equipe do então ministro da Fazenda Fernando Henrique, pensavam enfrentar com o receituário tradicional de aperto fiscal e monetário.

Agora, novamente, o economista está envolvido em discussões para enfrentar dilemas da economia brasileira, e, mais uma vez, não abre mão de buscar saída fora do saber convencional.

“Uma taxa de juros inferior ao crescimento da economia, como política de longo prazo, levaria a uma economia de 4% a 6% do PIB ao ano no serviço da dívida, que pode ser usada para investimento”, defende ao NeoFeed.

Ele desmente as notícias de que estaria assessorando o ex-governador Geraldo Alckmin, candidato a vice-presidente do líder nas pesquisas, Luís Inácio Lula da Silva, apesar de ter conversado com ambos.

Ele confirma, porém, ser ouvido pelos economistas que assessoram o candidato petista, que se mostraram receptivos a ideias comuns de “políticas alternativas”, como o tratamento especial ao programa de investimentos públicos a ser lançado em caso de vitória lulista nas eleições.

“O teto dos gastos é um equívoco, um limite linear que estrangulou o investimento público”, critica, ao propor – com a concordância dos economistas que assessoram Lula - que os investimentos não sejam submetidos a esse tipo de restrição.

Parte das ideias de Lara Resende estão em um estudo que coordenou para o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), recém-publicado. “A ameaça de fuga de capitais especulativos é uma chantagem do mercado financeiro”, diz, apontando a confortável posição das contas externas do país.

Lara Resende explicou, ao NeoFeed, suas ideias para ampliar o investimento, a partir de um comitê especial a ser criado no governo, e fazer uma revisão dos gastos para dar eficiência às despesas públicas, hoje, segundo acredita, sem controle.

“O que temos (hoje), clarissimamente, é uma situação de malversação de gastos públicos”, acusa o economista, para quem o ministro da Economia, Paulo Guedes, “se desmoralizou, fez o oposto do que disse que faria”. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Você diz que o Banco Central, além de definir a taxa básica de juros, a Selic, deveria ter maior controle sobre a curva – ou “estrutura a termo” - da taxa de juros da dívida. Isso permitiria ao BC levar em conta também metas de crescimento e de emprego ao definir juros, como defendem assessores de Lula?
Não necessariamente. Os instrumentos nas mãos do BC são limitados, e ele precisa coordenar políticas; este é o ponto fundamental, está se tornando um novo consenso: as políticas monetária e fiscal não podem ser independentes, desconectadas e contraditórias.

Pode explicar?
A percepção dominante é que a taxa de juros é função da oferta de fundos e a demanda de fundos, os loanable funds. A oferta de fundos viria da poupança, da renda auferida mas não usada em consumo ou investimento; e a demanda viria daqueles que têm mais necessidade de gastar do que tiveram renda. Essa tese, a visão convencional e ainda dominante, esquece que não é preciso ter renda auferida e não consumida para ter crédito. O sistema financeiro não apenas transfere renda gerada e não consumida de poupadores para os que querem consumir ou investir.

Não é só intermediário...
Não é um mero intermediário, é o criador de crédito, de crédito puro, sem lastro. O sistema bancário privado expande o crédito e depois, obrigatoriamente, se refinancia no Banco Central. Como a moeda é fiduciária, não tem lastro, o Banco Central pode expandir, sem restrição, o que for demandado de crédito. Se o público não quiser a moeda emitida, a única alternativa é sair do país, comprar moeda estrangeira, o que pode levar a uma desvalorização. Este é o limite da expansão creditícia e monetária, aquela que provoca uma desvalorização. O mercado financeiro contemporâneo não tem compradores finais da dívida pública na dimensão que teve no passado; quem determina a estrutura de preço dos títulos públicos são os intermediários financeiros, os dealers, os market makers que dão liquidez à dívida pública, garantem que se pode vender facilmente um título de longo prazo. Dívida pública e moeda são perfeitamente líquidas hoje em dia.

Mas em um cenário de aumento de juros internacionais como temos, o poder do BC sobre essa taxa é limitado...
Como se calcula o preço de um título de dez anos? Com a estimativa do custo de carregamento desse título, a taxa de um dia daqui até o seu vencimento, que é fixada pelo Banco Central. Calculo quanto vai me custar para carregar esse título e quero uma taxa um pouco mais alta para ter lucro, é só isso. Como tenho de estimar a taxa dia a dia do Banco Central, que é incerta, peço um prêmio de risco – não risco de default, mas de que a taxa possa subir mais que o esperado.

Mas há outros riscos...
O risco é o mercado achar que a taxa presente também está baixa, e querer sair do país, comprar moeda estrangeira, ir para títulos americanos, por exemplo, onde os juros estão subindo. Isso desvaloriza a moeda nacional e pressiona a inflação; este é o principal mecanismo de transmissão da política monetária no mundo de hoje. A política de juros afeta os preços via taxa cambial. No passado funcionava via desemprego, a curva de Phillips, com o trade off “mais desemprego, menos inflação”, que está muito mais fraco no mundo todo. Provavelmente porque o emprego mudou, não é mais estruturado, tem muita informalidade, a força sindical diminuiu.

“O Brasil continua sendo o mais atrativo mercado de arbitragem financeira – não de investimento - que é pura especulação de curto prazo”

E o perigo de o Brasil perder credibilidade e enfrentar uma ameaça do mercado de fuga de capitais?
Isso é conversa fiada. O Brasil tem uma taxa de juros de 13,25%; a taxa de inflação brasileira está pouco acima de 7%, ou seja, uma taxa real de juros em torno de 6%. É a mais alta do mundo. Os EUA têm uma inflação de 9% e uma taxa de juros de 4%, a taxa real é negativa. O Brasil continua sendo o mais atrativo mercado de arbitragem financeira – não de investimento - que é pura especulação de curto prazo. Se o Brasil baixasse sua taxa nominal de juros, o efeito seria nenhum, continuaria atrativo.

Nenhum?
A queda de juros poderia até elevar o câmbio e pressionar temporariamente a inflação; mas um país com as reservas e o superávit comercial que o Brasil tem, um setor agroexportador como o nosso, com um déficit muito pequeno em conta corrente, com alta de preços de commodities agrícolas e minerais que o país exporta, relativa autonomia em petróleo, não tem problema. A ameaça de fuga de capitais especulativos é uma chantagem do mercado financeiro. A grande mídia acredita, porque hoje só ouve o mercado financeiro.

Você coordenou um documento do Cebri que defende “controle macroeconômico e setorial do crédito”, para evitar bolhas especulativas e estimular setores específicos. Como seria isso?
É o que já faz o Japão, o que faz a China: o credor primário, capaz de criar crédito sem lastro na economia é o Estado, via seu braço financeiro que é o Banco Central. O sistema bancário com reservas no Banco Central é como um franqueado desse poder, cria crédito independentemente de ter ou não depósitos. Como o sistema financeiro privado é mais competente na avaliação de crédito do que o setor público, é melhor que o crédito não seja concedido diretamente pelo Estado.

“O Guedes (Paulo Guedes, ministro da Economia) se desmoralizou, fez o oposto do que disse que faria. Ele demonstrou que não tem convicção, só ambição de ficar no governo”

Como atuaria o setor privado?
O setor privado dirige crédito para onde houver melhor relação de risco-retorno, às vezes provocando bolhas especulativas. Se o mercado está subindo, vão alavancar gente que quer comprar ações, e isso não é investimento, não expande capacidade produtiva. Um exemplo: em infraestrutura, se não tiver uma regulamentação que garanta determinada rentabilidade, o setor financeiro privado pode não ter interesse em financiar. O mesmo vale para a educação básica: sem rentabilidade, vão preferir financiar ativos especulativos que dão mais resultado. Por isso, a ideia de definir volumes de crédito a serem dirigidos para certos setores, como uma política pública de crédito, faz todo sentido.

E o papel do BNDES ou bancos públicos nisso?
O BNDES é um bom exemplo, um banco que opera com repasses, quem faz a avaliação de crédito e corre o risco são os bancos privados repassadores. A ideia é estender um sistema como esse. Linhas para pesquisa, por exemplo: não são necessariamente rentáveis e têm alto risco; é possível garantir linhas especificas para financiar pesquisa. A reconversão energética e descarbonização irão exigir linhas específicas, mas a avaliação do risco do tomador deve ser do sistema financeiro privado, mais competente para fazer a avaliação do risco de crédito.

Pode dar outro exemplo?
Se o sistema imobiliário começa a se expandir e se alavancar demais, é possível reduzir a velocidade da expansão do crédito imobiliário, para evitar uma bolha. Aconteceu na China, há risco nos EUA, na Inglaterra. Esse tipo de controle é política creditícia, política monetária. Hoje, é um instrumento mais importante, mais eficaz, tanto para induzir crescimento na direção em que se quer, para evitar rupturas e crises grandes financeiras. Exige avaliação inteligente das autoridades monetárias e fiscais. Se é necessário expandir o investimento em infraestrutura, na descarbonização da economia, na eletrização dos meios de transporte, é preciso haver coordenação das políticas.

“A ideia de definir volumes de crédito a serem dirigidos para certos setores, como uma política pública de crédito, faz todo sentido”

Estamos vendo uma deterioração dos controles fiscais, gastos decididos por motivos puramente eleitorais, há temores de descontrole na gestão da dívida; como se sai dessa armadilha, hoje?
Qualidade do gasto público é fundamental. O gasto corrente, o custo de operação do Estado, deve ser o menor possível para que se tenha um Estado eficiente. O gasto de investimento do Estado tem de ter retorno em termos de produtividade, o que garantirá a convergência da relação dívida/PIB. Se o investimento tiver retorno superior ao custo da dívida pública, por definição, você vai ter convergência na relação entre PIB e dívida pública, mesmo que, num primeiro momento ela aumente, ao expandir o crédito para investimento na capacidade instalada da economia.

Muitos dos beneficiados por esse orçamento secreto foram exatamente os eleitos para o Congresso agora. Como um novo governo faria uma política fiscal responsável?
Gasto público populista, irresponsável, demagógico, patrimonialista, para beneficiar os que ocupam e controlam o Estado, ou beneficiar lobbies corporativistas de certos setores, é uma tragédia. O orçamento secreto, nesse governo, é exemplo máximo disso: R$ 17 bilhões sem nenhuma transparência, decisão completamente na mão do relator do orçamento, que vai desde compras de apoio com pequenas obras até a corrupção direta. Difícil compreender que a mídia diga que Lula pede um cheque em branco e acha que o governo Bolsonaro não tem cheque em branco, não cobrem dele.

Está claro que liberal Bolsonaro não é, não?
O Guilherme Mello, que está na equipe de economistas do Lula, tem dito sistematicamente que precisamos de uma política fiscal responsável. Isso significa gastar bem, gastar direito. O teto dos gastos é um equívoco, um limite linear que estrangulou o investimento público. É preciso revê-lo, no mínimo, tirar investimento do teto dos gastos. Mas definir um arcabouço jurídico e institucional de correta responsabilidade fiscal é tarefa exclusiva do executivo, muito menos pode ser ditado por um candidato que ainda nem foi eleito. É uma negociação do Executivo com o Legislativo.

“O teto dos gastos é um equívoco, um limite linear que estrangulou o investimento público. É preciso revê-lo, no mínimo, tirar investimento do teto dos gastos”

Você defende um comitê governamental para tratar disso?
O orçamento e os limites – que defendo – para o orçamento, as bases legais de sua aprovação e execução, são um dos elementos fundamentais da governança pública, do Estado. Não pode ser tratado como se fosse uma mera questão de equilíbrio orçamentário a todo custo e em qualquer circunstância. Analogia entre o estado e a família, que não pode gastar mais do que ganha, é atraente, mas falsa.

Nessa situação de incerteza e estresse fiscal, como financiar um programa de aumento da competitividade e produtividade da economia?
Não sei se temos atualmente um problema de estresse fiscal; o que temos, clarissimamente, é uma situação de malversação de gastos públicos. Muito diferente de estresse fiscal. O que é preciso fazer é corrigir essa malversação de fundos públicos. Investir bem. É preciso garantir que a taxa real de juros não será superior à taxa de crescimento da economia. Quando o juro básico é fixado em 13% ao ano, sobre uma dívida pública de 80% do PIB, isso significa que até 10,4% do PIB ao ano será destinado ao serviço de dívida, para pagamento de juros. É gasto fiscal na veia, dinheiro público pago aos detentores de títulos, os agentes superavitários do Brasil. Uma política profundamente regressiva.

O que fazer?
Não estou propondo taxa de juros negativa, Brasil não é os EUA, não tem a moeda reserva mundial, mas garantir uma taxa de juros inferior ao crescimento da economia, como política de longo prazo, levaria a uma economia de 4% a 6% do PIB ao ano no serviço da dívida, que poderia ser usada para investimento. Abriria espaço para investir e acelerar o crescimento. O foco no de superávit primário é um viés ideológico que privilegia o pagamento de juros sobre todos os demais gastos. É garantir que não será gasto mais do que se arrecada, desde que os juros estejam fora dessa conta.

“O gasto público hoje é profundamente demagógico e não democrático. Sem transparência, sem credibilidade, corporativista e patrimonialista”

Como garantir, no próximo governo, que, em caso de expansão fiscal, os gastos públicos sejam meritórios como você defende?
O gasto público hoje é profundamente demagógico e não democrático. Sem transparência, sem credibilidade, corporativista e patrimonialista. O que o país deve fazer é gastar bem, essencialmente em investimento, com alta taxa de retorno. Isso não é fácil, até porque um programa bem-feito de investimento, inclusive na educação, toma tempo para ser estruturado. Hoje há três eixos: infraestrutura, reorganização ambiental e descarbonização e renovação competitiva na indústria. E o foco estará sempre na rede de proteção social; a ideia não é dar cheque, o que se deve fazer é um programa bem montado, de garantia de emprego, coordenada com reeducação profissional, num programa conjunto com o setor público.

As dificuldades econômicas com o insucesso de políticas ortodoxas têm levado à eleição de líderes populistas; e explica a ascensão de um Bolsonaro no Brasil?
Eu não faria associação direta entre ortodoxia e a eleição de lideranças populistas; há mais variáveis envolvidas. Acredito que a visão do neoliberalismo, de que o Estado é um mal que deve ser asfixiado e não tornado competente e sério, que a governança da vida pública é desimportante, tem mais culpa no cartório. A defesa de que o estado deve ser tocado por uma tecnocracia não eleita, como no caso de Bancos Centrais independentes, tira o poder de formulação de políticas dos políticos eleitos, que passam a legislar em causa própria, de forma patrimonialista e desvirtuam a democracia.

Noticiaram que você está assessorando o candidato a vice de Lula, Geraldo Alckimin. Está?
Não, minha relação com Alckmin é bastante cordial, mas distante. Recentemente, estive duas ou três vezes com ele e com o Lula. Tenho conversado com alguns os economistas do PT e do Lula, conversei com o (Fernando) Haddad, o Guilherme Mello, o (Aloisio) Mercadante, o (Gabriel) Galipolo.

Acha que eles têm se interessado em suas propostas?
Ao conversar com alguns dos economistas que estão com Lula, verifiquei que tinham, em comum com os do núcleo de política econômica do Cebri, uma visão crítica da macroeconomia hegemônica. Essa crítica, sobretudo à ortodoxia fiscalista, não é original, tem raízes em Keynes, Shumpeter e Minsky, e foi retomada após a crise financeira de 2008 e a pandemia. Temos uma visão comum que facilita pensar em políticas alternativas para promover um novo ciclo de desenvolvimento neste início do século 21.

Que políticas, por exemplo?
Uma política de investimentos que não se sujeita ao teto de gastos, por exemplo.

Como você vê a aposta de muitos no mercado financeiro que continuam com Bolsonaro na opinião de que ele traz menos riscos de repetir erros do passado?
Não vi ninguém dizer isso explicitamente. É difícil ser uma pessoa educada e fazer defesa do bolsonarismo, hoje claramente uma ameaça não apenas para a economia, mas para a democracia. Acreditei no liberalismo do Paulo Guedes quando ele entrou no governo, por isso mesmo achei que ele não iria durar. Só que o Guedes se desmoralizou, fez o oposto do que disse que faria. Ele demonstrou que não tem convicção, só ambição de ficar no governo.