Brasília – A catástrofe climática que se abate sobre a população e o meio ambiente no Rio Grande do Sul parece não sensibilizar boa parte do Congresso Nacional, que segue irredutível em avançar com projetos de lei que atacam diretamente a preservação da floresta.

Nesta quarta-feira, 8 de maio, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) pautou a votação de um projeto de lei que permite a redução de reservas florestais em Estados e municípios da Amazônia Legal. Na prática, o PL 3.334/2023 reduz, de 65% para 50%, a parte do território dos Estados ocupados por áreas protegidas. Com isso, pretende-se reduzir os territórios categorizados como “reserva legal”, para que caiam dos atuais 80% para até 50% em áreas florestais.

O projeto, de autoria do senador Jaime Bagattoli (PL-RO), com relatoria do senador Márcio Bittar (União-AC), faz uma alteração profunda nas proteções previstas no Código Florestal, aprovado em 2012. A votação estava marcada para hoje, mas foi cancelada de última hora, porque, segundo o presidente da comissão, senador Davi Alcolumbre (União-AP), Márcio Bittar tirou uma licença médica.

O NeoFeed teve acesso a uma nota técnica elaborada nesta semana pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), que alerta sobre os riscos, caso o PL seja aprovado. Dos nove estados que integram a região da Amazônia Legal, três (Amapá, Amazonas e Roraima) possuem mais de 50% de seus territórios constituídos por unidades de conservação de domínio público e terras indígenas homologadas. Já na seara municipal, 93 cidades seriam enquadrada pelo o que prevê o PL.

O MMA estima que a aprovação pode resultar na conversão de cerca de 281,6 mil km² de áreas de floresta atualmente protegidas em território liberado para todo tipo de exploração. Isso equivale a uma área superior à da cidade de São Paulo, com seus 248 mil km², e equivale a todo o estado do Rio Grande do Sul, com 281.730,2 km². A área representa, ainda, 31 vezes a taxa anual de desmatamento registrada na Amazônia Legal pelo Inpe (9.001 km²), entre agosto de 2022 e julho de 2023.

Segundo os cálculos oficiais, a derrubada de 28,17 milhões de hectares representaria, ainda, a emissão de 14,540 bilhões de toneladas equivalentes de CO2, ou mais de sete vezes a emissão total anual do Brasil, inviabilizando o cumprimento das metas do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), que tem o objetivo de zerar o desmatamento até 2030.

“É fundamental superar a visão extemporânea de que a conservação da vegetação nativa nas áreas de Reserva Legal representa um empecilho à produção agropecuária dos imóveis rurais e ao desenvolvimento regional”, afirma o MMA, em sua nota técnica.

“Na verdade, a disponibilidade de fatores básicos como água, solo em boas condições e presença de polinizadores, conservados e intensificados pela presença de áreas com cobertura vegetal nativa, é necessária para uma boa produtividade agrícola, no que diversos estudos realizados recentemente têm demonstrado que áreas de vegetação nativa próximas a áreas de cultivos agrícolas reduzem os investimentos em insumos, como agrotóxicos e fertilizantes.”

O MMA lembra, ainda, o efeito multiplicador que essa medida pode ter em uma região que já sofre com ilegalidades e impactos associados ao desmatamento, como a grilagem de terras públicas, os conflitos fundiários com povos indígenas e comunidades tradicionais e as alterações no regime hidrológico da região.

“Se aprovado, o PL pode contribuir consideravelmente para o alcance do ponto de não retorno da floresta amazônica – estágio em que a redução da cobertura florestal não possibilita a quantidade de chuva necessária para garantir a manutenção da própria floresta, comprometendo radicalmente as condições de vida e os sistemas produtivos regionais”, afirma o ministério.

Na defesa do projeto, Marcio Bittar afirma que a Constituição, “classificou a floresta amazônica brasileira como patrimônio nacional”, mas que “a defesa do meio ambiente não é, contudo, o único ou o mais importante fim a ser perseguido pelo Estado brasileiro”.

Para Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, a postura parlamentar vai na contramão dos fatos. “Em plena crise climática acompanhada de eventos extremos recorrentes, o Congresso Nacional insiste em tentar tratorar a legislação ambiental. O número de projetos de lei que buscam destruir as normas que protegem meio ambiente e clima só aumenta”, diz ela. “Fazem isso como se não houvesse relação alguma com a crise climática e seus efeitos.”

Araújo pondera que há parlamentares que lutam pela causa ambiental, mas que hoje são exceção. “Querem acabar com a proteção da vegetação de campos e outros ecossistemas não florestais. Querem facilitar a redução da reserva legal na Amazônia. Querem implodir com os recursos do Ibama. Querem transformar o licenciamento ambiental em um apertar de botão irresponsável, sem entrega de estudos ambientais prévios. Os brasileiros, que tenho certeza, se preocupam com a crise climática, têm de entender que seus representantes estão indo na direção oposta do que deveriam ir.”

Dos campos gaúchos para os outros biomas

A flexibilização do Código Florestal também está na mira de outro projeto, o PL 364/2019, que elimina a proteção de todos os campos nativos e outras formações não florestais. O texto, que está na Câmara, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) no fim de março, com parecer relatado pelo deputado gaúcho Lucas Redecker (PSDB/RS). A deputada Erika Hilton (PSOL/SP) apresentou recurso contra a apreciação conclusiva das comissões, mas o plenário da Câmara ainda não decidiu se vai examinar a matéria.

Segundo avaliação técnica do Observatório do Clima, o PL 364 é um dos mais nocivos ao meio ambiente, porque deixa toda vegetação “não florestal” do país aberta a todo tipo de exploração, permitindo que os campos nativos e outras formas de vegetação nativa possam ser livremente convertidas para uso alternativo do solo (agricultura, pastagens plantadas, mineração etc).

O texto, como está hoje, pode retirar proteção adicional de toda a Mata Atlântica, além de deixar completamente desprotegidos cerca de 48 milhões de hectares de campos nativos em todo o país, o que significa desproteger 50% do Pantanal (7,4 milhões de hectares), 32% do Pampa (6,3 milhões de hectares) e 7% do Cerrado (13,9 milhões de hectares), além de quase 15 milhões de hectares na Amazônia, sujeitando-os a uma conversão agrícola descontrolada e ilimitada.

O deputado gaúcho Alceu Moreira (MDB-RS), autor do projeto, defende sua ideia, sob a justificativa de que os “campos de altitude”, atualmente considerados pela legislação como ecossistemas associados ao bioma Mata Atlântica, “são formações naturais propícias ao desenvolvimento de atividades agrossilvipastoris, em especial na região Sul do País”.

“Há séculos essas formações são ocupadas e exploradas por agricultores e pecuaristas como forma de garantir o sustento de suas famílias, ao mesmo tempo em que prestam significativa contribuição para a produção de alimentos”, afirma o parlamentar. “A criação extensiva de gado, por exemplo, evita o adensamento das árvores e ajuda a manter estável a estrutura e a diversidade da vegetação campestre.”

Segundo Alceu Moreira, o enquadramento da região como área de Mata Atlântica tem inviabilizado a produção do agro na região. “Extensas porções de terras não podem produzir, e agricultores que plantam ou criam animais nessas áreas por pura necessidade de sobrevivência, acabam sendo autuados e tratados como criminosos. Calcula-se um passivo de mais de R$ 10 milhões em multas aplicadas apenas nos Campos de Altitude do Rio Grande do Sul.”

Os ambientalistas alertam, porém, que a proposta, que vem sendo apoiada por organizações do setor de florestas plantadas, é absolutamente desproporcional, porque retira ou diminui significativamente a proteção dos campos nativos e de outras formas de vegetação não florestal em todos os biomas brasileiros, não apenas na região Sul.

Segundo a organização SOS Mata Atlântica, o texto, como está hoje, “é extremamente grave, por, numa só tacada, retirar a proteção adicional a toda a Mata Atlântica, bem como deixar completamente desprotegidos o Pantanal e partes expressivas do Cerrado, da Amazônia, Pampa e da Caatinga”, quando uma proposta alternativa na versão original do projeto, ou seja, sem as mudanças que foram incluídas, e que previa um impacto ambiental infinitamente menor, localizado e com segurança jurídica aos produtores rurais dos campos de altitude sulinos.

Licenciamento nacional em xeque

Um terceiro projeto, considerado um dos mais graves em tramitação no Congresso, altera profundamente a Lei Geral do Licenciamento Ambiental. O PL 2159/2021 já foi aprovado na Câmara e aguarda apreciação pelo Senado. O texto prevê o “licenciamento autodeclaratório”, por adesão e compromisso (LAC), no qual o empreendedor não apresenta qualquer estudo ambiental para obter sua licença. O relatório de caracterização do empreendimento sequer precisa ser conferido. Essa modalidade passa a ser a regra, abrangendo a maior parte dos processos.

Além disso, o texto estabelece uma lista extensa de atividades isentas de licenciamento ambiental, além de só considerar passíveis de impactos terras indígenas e quilombolas que já estejam homologadas ou tituladas, ou seja, ignora aqueles com demarcação em andamento.

A senadora Tereza Cristina (PP/MS), ministra da agricultura do governo Bolsonaro, é relatora na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA). O senador Confúcio Moura (MDB/RO) é relator na Comissão de Meio Ambiente (CMA).

Lições não aprendidas

A lista dos 25 projetos que Observatório do Clima batizou de “novo pacote da destruição” inclui, ainda, propostas que afetam legislações sobre recursos hídricos, mineração, oceano e zonas costeiras, além de financiamento da política ambiental.

“Há mais de uma década o Congresso tem aprovado retrocessos na contramão do combate à emergência climática. Dada a importância ambiental do Brasil, o atual pacote da destruição pode tornar inúteis os esforços globais de estabilizar o clima, gerando a proliferação de desastres climáticos como o do Rio Grande do Sul”, diz o consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), Maurício Guetta.

Nesta quarta-feira, o número de mortos decorrente da tragédia climática no Rio Grande do Sul chegou a 100 pessoas. Há outros 128 desaparecidos e 372 feridos. Mais de um 1,4 milhão de pessoas foram afetadas pelas chuvas e 163 mil estão desalojadas. Outras 66,7 mil foram acolhidas em abrigos, conforme informações da Defesa Civil.

Um total de 417 dos 497 municípios gaúchos foram afetados pela tragédia. Ainda não há números fechados sobre o prejuízo causado, porque os danos ainda estão em andamento, mas a Confederação Nacional de Municípios já estima um prejuízo de pelo menos R$ 4,6 bilhões.

O coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, deputado Nilto Tatto (PT-SP), disse que a ala ambiental da Câmara divulgou uma lista com diversos projetos de lei que tramitam no Congresso e que, se aprovados, aumentariam ainda mais a frequência e a intensidade de eventos extremos, como as chuvas que estão castigando o Rio Grande do Sul.

“Tem projeto, já aprovado na Câmara, que reduz a proteção de áreas não florestais, que para os gaúchos são os Pampas. Me faltam adjetivos para qualificar quem vota para acabar com os Pampas, enquanto assiste o que está passando o povo do Rio Grande do Sul. Estes projetos não deveriam sequer ser tema de discussão. Deveriam ser prontamente arquivados”, afirma Tatto.

Para o presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), Carlos Bocuhy, o Congresso revela a sua desconexão com os fatos, ao tentar impor uma agenda contrária à preservação, com impacto direto na vida das pessoas e na economia do país.

“Dentro do cenário atual de emergência climática, é preciso tolerância zero com os que legislam em causa própria contra a proteção da vida e do meio ambiente, ferindo os direitos inegociáveis da sociedade brasileira e preceitos fundamentais determinados pela Constituição Federal”, disse.