As polêmicas em torno do leilão de arrendamento do chamado Tecon 10 – que envolverá a expansão de 50% do terminal de contêineres STS 10 no Porto de Santos, hoje operando no limite – continuam escalando, numa indicação de que a disputa deve acabar na Justiça, antes ou depois da realização do certame, com previsão de ocorrer até o fim do ano.

É o que se entende após mais dois dias de tensão nos bastidores. Uma intervenção da Secretaria de Reformas Econômicas (Seae), do Ministério da Fazenda, sugerindo alterar as regras do leilão determinadas pela Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), foi rebatida nesta sexta-feira, 22 de agosto, de forma dura pela ICTSI, conglomerado multinacional filipino que opera portos e terminais de contêineres em diversos países e que já demonstrou interesse em participar do leilão.

O ruído em torno do leilão se deve ao que está em jogo. O porto de Santos é o maior da América Latina, responsável por 40% do volume movimentado no País. O leilão do Tecon 10 deve movimentar investimentos estimados em R$ 6,45 bilhões ao longo de um contrato inicial de 25 anos, com possibilidade de prorrogação por até 70 anos. O vencedor do certame vai construir um megaterminal de contêineres e um terminal de passageiros para navios de cruzeiro.

A polêmica teve início assim que a Antaq anunciou que o leilão seria realizado em duas etapas. Na primeira, a disputa seria restrita a empresas sem operação de contêineres na região do porto, para evitar o risco de concentração do mercado no porto santista. Somente se não aparecer concorrentes nessa primeira fase, ela seria aberta aos atuais operadores.

A decisão da Antaq – que segue as regras adotadas em outros leilões no setor portuário - foi imediatamente contestada por empresas que atuam no porto. Entre elas, a BTP, que é controlada pelos dois maiores armadores do mundo, MSC e Maersk, e a Santos Brasil, que passou a ser controlada pelo armador CMA CGM, terceiro maior.

A Maersk Brasil, por exemplo, ingressou com uma ação judicial na Justiça Federal de São Paulo, alegando que a restrição à participação de operadores já atuantes no porto na primeira fase da licitação foi introduzida sem nova consulta pública, o que violaria os princípios da legalidade e da transparência. A Maersk solicitou liminar para suspender essas regras e permitir sua participação desde o início do certame.

O juiz federal Paulo Cezar Neves Junior, no entanto, indeferiu o pedido liminar, afirmando que a questão concorrencial já havia sido amplamente debatida em audiências públicas realizadas em 2022 e 2025. Segundo ele, não há ilegalidade no procedimento da Antaq.

O debate se as regras, ao deixar de fora os principais operadores do porto, poderiam prejudicar a  concorrência foi levado ao Congresso Nacional e também aos gabinetes do governo federal. A percepção é de que o objetivo era favorecer concorrentes de fora - entre eles, a chinesa Cosco, que é a quarta maior empresa de navegação do mundo, e outros operadores portuários gigantes, como a Hudson Ports (EUA), e a ICTSI, que agora entrou na briga para valer.

Parecer tardio

O parecer da Seae chamou a atenção por ter sido encaminhado depois que as regras do leilão da Antaq foram enviadas para o Tribunal de Contas da União (TCU), que deve dar o parecer final sobre o certame.

O órgão do Ministério da Fazenda tem como missão promover a concorrência e eficiência econômica nos setores regulados, atuando como órgão técnico dentro do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, ao lado do Cade e da SDE. Em projetos de concessão, a Seae analisa modelagens que possam gerar concentração de mercado, barreiras à entrada ou práticas anticompetitivas – exatamente do que diz respeito o leilão do Tecon 10.

Em seu parecer, a Seae sugeriu que o certame seja feito em uma única etapa, com exigência de desinvestimento caso a empresa vencedora já tenha operação no porto de Santos.

Entre os argumentos alinhados, o órgão do Minsitério da Fazenda afirma que a proposta da Antaq é considerada “bem-intencionada, mas desproporcional”. A vedação inicial à participação de incumbentes é vista como “excessivamente gravosa”, uma vez que o desinvestimento já seria suficiente para mitigar riscos de concentração horizontal.

“O modelo faseado pode gerar judicialização, com atrasos significativos e impactos negativos ao comércio exterior”, diz o parecer, acrescentando que o modelo sugerido de leilão de fase única com desinvestimento garante maior concorrência pelo ativo, permite participação de players nacionais e internacionais não incumbentes e evita cenários de concentração que seriam difíceis de reverter após consolidados.

No documento protocolado no TCU na tarde de sexta-feira, 22, o conglomerado filipino ICTSI rebate ponto por ponto as recomendações da Seae. Segundo a empresa, o parecer do órgão valida a competência da Antaq, depois a desautoriza, ao sugerir alterações no leilão que contradizem frontalmente a análise técnica da agência.

No parecer, a empresa cita uma "incoerência técnica gritante" do órgão do Ministério da Fazenda, ao fazer “o diagnóstico correto, mas com receita errada”. Isso porque identifica perfeitamente os problemas concorrenciais, mas propõe solução que os agrava.

A gigante filipina sugere que a adoção do parecer da Seae beneficiaria os atuais operadores do porto, citando uma suposta “solução ilusória” causada pelo desinvestimento dos operadores proposto pelo órgão do Ministério da Fazenda.

“Maersk e MSC são sócias no BTP - se uma vencer, venderá para a outra, aumentando a concentração de 40% para 58%”, adverte a concorrente filipina.

“A manifestação da ICTSI expõe de forma cristalina como o parecer da Seae representa uma guinada inexplicável e prejudicial ao interesse público”, afirma a empresa. “As inconsistências apontadas revelam um parecer tecnicamente frágil, juridicamente questionável e economicamente.”

O NeoFeed ouviu dois especialistas do setor sobre a polêmica. Um deles, que defende as regras estabelecidas pela Antaq e preferiu ficar no anonimato, admite que a Seae tem o dever de se manifestar em tais situações.

“O problema é fazê-lo às vésperas da decisão do parecer do corpo técnico do TCU, deixando pouco tempo para reações e debates e contrariamente ao que a própria Seae sempre defendeu”, diz a fonte, prevendo que as empresas atualmente fora do leilão provavelmente vão lutar até o fim, incluindo com judicialização da questão.

Já Felipe Kfuri, sócio do escritório L.O. Baptista Advogados e com atuação no setor de logística, enfatizou que o debate público entre os interessados e os órgãos envolvidos na modelagem da licitação do Tecon 10 pode ser considerado não apenas legítimo, mas essencial para assegurar a transparência, a isonomia e a maximização do interesse público no processo licitatório.

“Nesse contexto, manifestações técnicas e jurídicas como o parecer apresentado pela ICTSI — assim como eventuais contribuições de outros agentes do setor — devem ser formalmente analisadas pelas autoridades competentes, com a devida seriedade e imparcialidade”, afirma Kfuri.

O terminal a ser leiloado será o maior do Brasil para contêineres, com capacidade de movimentar até 3,5 milhões de TEUs por ano e ocupará uma área estratégica de 621,9 mil m² no bairro do Saboó, em Santos.