A incapacidade do consórcio do Empreendimento NCPFI-RJ Fundo de Investimento Imobiliário para reunir capital e dar início às obras do Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (Cibs), no Rio de Janeiro, levou o governo federal a bater às portas do Tribunal de Contas da União (TCU). Ou melhor, a procurar a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (Consenso) da Corte.

O Ministério da Saúde, representando a Fiocruz, tentava ali assegurar a construção do empreendimento - que, segundo a pasta, permitirá a produção de vacinas e biofármacos para o SUS - sem necessidade de uma nova licitação. Assim, desde dezembro do ano passado, trava-se no prédio do TCU, em Brasília, uma negociação que envolve financiamento de R$ 1,2 bilhão, de um contrato original de R$ 9,7 bilhões.

O processo entre o consórcio de empresas privadas e o governo é um dos 11 que estão em análise no TCU e na Consenso, uma espécie de câmara de conciliação que foi vista com ressalvas por agências reguladoras, pela Advocacia Geral da União (AGU) e pela Controladoria Geral da União (CGU), mas defendida por congressistas e com o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Entre as companhias que estão na lista dos acordos estão concessionárias de telefonia, de aeroportos, ferrovias, rodovias, energia, além de hospitais, disputas por aposentadoria de servidores - tem também contratos envolvendo saúde pública e até decisões parlamentares.

Os acordos ainda em aberto ultrapassam os R$ 80 bilhões, se forem considerados os contratos iniciais. A conta feita pelo NeoFeed levou em consideração os dados nas peças incluídas nos despachos dos ministros do TCU ou nos valores originais das licitações.

Outros 14 acordos já foram homologados, com valores que ultrapassam os R$ 100 bilhões. Pelo menos essa é a parte visível dos processos, pois parte deles está sob sigilo, reforçando apelos dos críticos por mais transparência.

Na avaliação dos críticos, o TCU não poderia servir ao mesmo tempo de órgão de controle e avalizador de consenso entre o setor privado e o governo, o que seria um poder desmedido. O tribunal, a partir dessa lógica, define quais as pendengas deve interferir, estabelecendo inclusive ações de políticas públicas, que fogem das atribuições da Corte de fiscalização. Além disso, é dito que, por mais que outros órgãos públicos participem dos acordos, é o TCU que toma o lugar principal na mesa de negociações.

Pelas regras, para uma demanda chegar à Consenso é preciso que um órgão do governo solicite a análise do TCU. Na conta pode entrar renovação de convênios por impossibilidade de licitações ou dificuldades de empresas cumprirem acertos financeiros, por exemplo. A regra, segundo o TCU, para que se inicie o acordo é o interesse público, evitando que contratos caduquem ou ocorra perda de recursos da União.

Ao todo, a Consenso já conta com 36 pedidos desde 2023. Os trabalhos foram interrompidos por dois meses no ano passado, depois de uma disputa entre o então presidente do TCU Bruno Dantas e o ministro-chefe da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias.

A disputa com Dantas suspendeu as atividades da Consenso depois que Messias criou a Resolve (Rede Federal de Mediação e Negociação), dissolvida por Lula dias depois. Com isso, os trabalhos do TCU foram retomados.

Em entrevista exclusiva ao NeoFeed, o atual presidente do TCU, Vital do Rêgo Filho, defendeu os trabalhos da secretaria da Corte e disse que vai buscar ferramentas para ampliar o número de acordos.

“A Consenso foi um dos maiores passos que o TCU poderia ter dado na questão da resolutividade de conflitos”, afirma Rêgo Filho. “O TCU é um órgão que define conflitos administrativos que envolvem a economia nacional. A Consenso foi criada exatamente para diminuir esses conflitos e operacionalizar a economia nacional destravando investimentos que podem ser feitos e que estavam sob litígio.”

Depois da queda de braço com a AGU e da vitória de Dantas, os pedidos de negociação avançaram. Neste ano, já há três tentativas de negociação, numa média mensal que já empata com a do ano passado. Dessas tratativas de acordo, duas envolvem os ministérios dos Transportes e de Integração e Desenvolvimento Regional – uma terceira da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

Ao todo, em dois anos, 14 acordos foram homologados pelo TCU; sete foram arquivados; quatro não chegaram a acordos; e 11 estão em análise ou andamento.

tcu quadro neofeed

O embate entre a AGU e CGU começou ainda em meados do ano passado, quando os advogados da União pediram participação nas negociações no tribunal. O processo em questão envolvia uma solução consensual no setor de telefonia fixa.

A AGU considerava que a autorização para o processo dependia da anuência do ministério. Como a corda esticou, Lula foi chamado para arbitrar o conflito. E acabou recuando do decreto do Resolve, da AGU de Messias - e os acordos do TCU acabaram voltando.

“A nossa gestão tem ampliado o trabalho da Consenso. Mas o TCU não promove o consenso sozinho. A promoção do consenso se dá exatamente em torno de uma mesa em que o TCU é o moderador, mas quem define o consenso, efetivamente, são os órgãos do poder público, o Ministério da área e mais a AGU, a Controladoria Geral da União (CGU) e a própria empresa ou o concessionário”, diz Rêgo Filho.

Para o presidente do TCU, não há “esvaziamento” dos órgãos de controle. “Nem na AGU, nem na CGU e nem nas agências reguladoras. Todas se sentam à mesa, todas são parte integrante desse consenso que é mediado pelo órgão de controle externo”, afirma Rêgo Filho.

O NeoFeed procurou as empresas envolvidas nos acordos até aqui. Das 20 companhias contatadas, quatro responderam, avalizando o trabalho do TCU: a Via Brasil BR-163, a Triunfo Concebra, a Rumo e a Arteris. Todas defenderam a câmara de acordos criada no tribunal.

“A Via Brasil BR-163 confia em um consenso com o TCU, pois este é o caminho necessário para a adequação e modernização desse importante corredor logístico”, disse a concessionária, em nota.

Em nota, a Rumo diz que "a concessionária mantém o canal aberto com o poder concedente para otimização da malha por meio do Grupo Técnico liderado pelo Ministério dos Transportes e pelo órgão regulador (ANTT)".

A Triunfo Concebra destacou as etapas para readequação dos contratos e a Arteris considerou que o processo de repactuação tem potencial de promover investimentos no curto prazo para o setor.

A maior parte das empresas não se manifestou com o argumento de que um pronunciamento poderia interferir nos acordos. Nos bastidores, empresários defendem as negociações.

“Como o tribunal é a última instância, há uma segurança jurídica de manutenção dos acordos, o que não havia antes”, afirmou um executivo de uma empresa que está na mesa de acordos da Consenso.