A liquidação do Banco Master, que deve acionar algo em torno de R$ 41 bilhões em garantias – e pode chegar a R$ 48 bilhões caso o Banco Master Múltiplo, onde está o Will Bank, seja também liquidado – é o maior da história do Fundo Garantidor de Créditos (FGC).

E para o seu presidente, Daniel Lima, esse “evento relevante” é a chance de submeter o próprio desenho do mecanismo de resgate a um exame profundo: a forma de contribuição dos bancos ao escopo da cobertura oferecida ao investidor pessoa física.

Com um patrimônio de R$ 160 bilhões e liquidez imediata de R$ 122 bilhões, o FGC sai desse episódio com reservas suficientes para honrar todos os depósitos cobertos, com o desembolso sendo equivalente a cerca de 30% das reservas.

Apesar se não ameaçar o sistema, é justamente a combinação de tamanho do evento, visibilidade pública e desenho atual de incentivos que, na visão de Lima, exige um segundo movimento: o “pós-mortem” do caso Master e a discussão de ajustes estruturais para evitar novos episódios.

Um dos alvos dessa agenda é o modelo de contribuição em taxa flat, pelo qual todos os participantes recolhem o mesmo percentual sobre o volume de depósitos cobertos. Na prática, os grandes bancos, por concentrarem a maior parte desses recursos, acabam bancando a maior fatia da conta, o que tem alimentado incômodos no topo do sistema.

Lima não se esquiva da discussão: avalia que a estrutura pode ter sido adequada nos primeiros 30 anos de existência do FGC, mas admite que, para um mercado mais maduro, talvez seja a hora de “mudar a forma de dividir a conta do restaurante”, sem perder a proporcionalidade entre risco e captação.

Outro debate que deve ganhar força, a partir desse episódio, é o da própria cobertura. O teto de R$ 250 mil por CPF e instituição, com proteção integral de principal e rendimentos, vem sendo questionado por parte do mercado, que vê no modelo atual um estímulo para que investidores corram mais risco em troca de taxas altas, confiando no colchão do FGC.

Lima reconhece que a discussão tem mérito – afinal, trata-se de calibrar incentivos – mas pede cautela para que soluções “aparentemente simples”, como cobrir apenas o principal, não sejam facilmente neutralizadas por estruturas de engenharia financeira que esvaziem a regra e mantenham o mesmo risco de origem.

Essa tensão entre objetivo original e efeitos colaterais também aparece quando o assunto é a função do FGC no sistema bancário. Criado para evitar corridas bancárias e reduzir a necessidade de uso de recursos do Tesouro em crises, o fundo acabou, de forma indireta, permitindo que bancos médios e pequenos captassem com mais facilidade, sob a sombra da garantia.

Na visão de Lima, se a sociedade quiser atribuir ao FGC um papel explícito de instrumento de competição, além da função de estabilidade, será preciso discutir não apenas regras pontuais, mas o próprio tamanho e desenho do mecanismo. E isso envolve, necessariamente, Banco Central, Conselho Monetário Nacional, grandes e pequenos bancos e os distribuidores que levam esses produtos ao investidor final.

Confira a entrevista de Daniel Lima, presidente do FGC, ao NeoFeed:

Esse episódio do Master será o maior resgate da história do FGC em termos de volume. Esse tamanho muda algo em relação a prazos ou à operação?
Precisamos qualificar isso. É o maior da história, mas o FGC nunca foi tão robusto também. Hoje, o FGC tem um patrimônio de R$ 160 bilhões e uma liquidez imediata de R$ 122 bilhões. Se olharmos em termos relativos, ainda que o valor seja grande, o FGC também cresceu. Estamos falando de algo em torno de 30% das reservas do fundo. É significativo? É. Mas não é nada que ameace a saúde do FGC. O fundo continua robusto, com reservas robustas.

Pelos estudos que temos, pelas informações disponíveis e por entender que este é um caso muito isolado – até porque está na mídia há muito tempo, não foi surpresa para ninguém. Pode ter contrariado interesses, mas surpresa não foi. Não vemos aumento de risco sistêmico.

No caso do Master Múltiplo, em que há também o Will Bank dentro, faz parte do conglomerado, mas ele não apareceu na liquidação extrajudicial. Esses créditos podem entrar na conta de vocês?
Essa parte foi colocada em Administração Especial Temporária, o RAET, que é o Regime de Administração Especial Temporária. Isso significa que o banco pode, eventualmente, ser vendido. Esse é um possível desfecho. Havendo venda, o FGC não tem que pagar depósitos.

Mas não é o único cenário. Outro desfecho é a própria liquidação desse banco. O administrador especial temporário está ali justamente para avaliar qual é a melhor alternativa. Se ele decidir pelo pedido de liquidação, a nossa estimativa é de que haja ali, nessa parte ainda não liquidada do conglomerado, algo entre R$ 6 bilhões e R$ 7 bilhões a serem pagos pelo FGC. Lembrando que, por ser do mesmo conglomerado, esses créditos entram do limite de R$ 250 mil por CPF ou CNPJ.

"Se ele decidir pelo pedido de liquidação, a nossa estimativa é de que haja ali, nessa parte ainda não liquidada do conglomerado, algo entre R$ 6 bilhões e R$ 7 bilhões a serem pagos pelo FGC"

Alguns especialistas dizem que o FGC vinha acompanhando o crescimento do banco Master, que ganhou peso relevante nos depósitos elegíveis, e que o fundo poderia ter sinalizado antes um problema ao Banco Central. Como você responde a essas críticas? Esse episódio deixa lições?
Sem dúvida, vamos ter que estudar muito o caso. Sempre foi um motivo de apreensão e agora vamos precisar entender o que pode ser ajustado no mecanismo para torná-lo perene. O mecanismo tem dois lados. Um é recolher contribuições para ter recursos suficientes para os problemas. O outro é antever problemas. Se conseguimos antever problemas, sai mais barato para todo mundo e sai mais barato para a sociedade. Esse será o segundo momento: depois de pagar as garantias, fazer o 'pós-mortem', entender tudo o que aconteceu e propor ajustes aos bancos e financeiras, ao Banco Central e ao Conselho Monetário Nacional. Lembrando que não somos police makers, acatamos as regras dos reguladores.

Na prática, quem vai pagar a maior parte dessa conta são os grandes bancos. Pode explicar a regra que leva a isso?
Eles acabam contribuindo mais porque emitem mais. É um percentual em cima do saldo que cada um distribuiu. Se você distribuiu muito, incide o mesmo percentual sobre aquele valor e isso gera um valor absoluto maior. Mas, em termos relativos, o percentual é o mesmo. O modelo brasileiro é de taxa flat. Ou seja, é o mesmo percentual para todo mundo. Esse percentual incide sobre os depósitos cobertos.

Em termos relativos, cada instituição paga de acordo com a quantidade de recursos que capta com cobertura do FGC. Em termos absolutos, os grandes bancos acabam pagando mais porque distribuem muito mais depósitos elegíveis. Mas o percentual é igual para todos.

Diante desse episódio, faz sentido discutir mudanças nesse modelo de contribuição?
Eu acho que sim. A discussão sobre se o modelo de taxa flat é o mais adequado para o estágio de maturidade atual do nosso mercado vai ganhar força. Ele pode ter sido adequado nesses primeiros 30 anos, enquanto ainda éramos “jovens”. Talvez, para os próximos 30 anos, agora que estamos nos tornando adultos, o modelo precise ser diferente. O cenário de mercado mudou, a dinâmica mudou, a perspectiva de evolução também. O passivo coberto pelo FGC cresce muito rápido.

Então, é uma discussão válida e que deve ser bastante intensa no ano que vem. Não vamos conseguir fugir de um componente em que os grandes recebedores de depósitos desembolsem volumes altos – isso é impossível, porque sempre haverá certa proporcionalidade com o quanto cada um capta. Mas acho que dá para mudar a forma de dividir a conta. Hoje é como um grupo indo jantar: tem gente que toma refrigerante, tem gente que toma espumante. Até agora, temos dividido a conta proporcionalmente. Talvez seja hora de discutir outra forma de dividir a conta do restaurante.

Outro debate é sobre a própria cobertura: há quem defenda reduzir o teto de R$ 250 mil, há quem proponha pagar só o principal, sem rendimentos. Qual é a sua avaliação?
A discussão tem bastante mérito porque, no final do dia, estamos falando sobre incentivos. Se eu dou cobertura integral para uma taxa de 240%, 250%, 200% do CDI, acabo incentivando as pessoas a tomarem mais risco do que deveriam. Agora, qual é o jeito certo? Cobrir só principal? Principal corrigido pelo CDI? Principal corrigido pela inflação? É preciso pensar bem, porque eu consigo imaginar facilmente estruturas de engenharia financeira que tornem a regra inócua.

Você pode dizer: “vai ser só principal”. Aí alguém cria um CDB que paga 140% de juros e entrega os juros mensalmente ao investidor. No fim do dia, você está cobrindo um principal que remunera 140% de juros do mesmo jeito. Então, a discussão tem mérito, mas precisamos pensar muito bem em como implementar para não sermos passados para trás. Senão, criamos uma regra achando que resolvemos o problema e não resolvemos nada.

"Mas acho que dá para mudar a forma de dividir a conta. Hoje é como um grupo indo jantar: tem gente que toma refrigerante, tem gente que toma espumante. Até agora, temos dividido a conta proporcionalmente"

Há quem diga que o FGC tem um papel importante em ajudar bancos médios a captar, apoiar a competição e reduzir a concentração bancária. Esse é um papel formal do fundo?
Não. O FGC foi criado para evitar corrida bancária. Voltemos 30 anos atrás: saída do Plano Real, PROER, muitos bancos liquidados, muitas compras, um período muito conturbado. Para resolver aquela crise bancária, foi preciso usar dinheiro do Tesouro. A reação foi: “Precisamos nos preparar. Vamos criar um potinho de recursos, constituído pela própria indústria, para que, quando tivermos uma nova crise, usemos esse dinheiro e não o do Tesouro”.

Então, o FGC nasce para lidar com crises bancárias. Ele não é uma agência de fomento, não foi criado para fomentar competição. Existem outras políticas públicas para isso. Mas é inegável que a existência de um FGC robusto produz efeitos na agenda de competição. Ainda que ele não tenha sido criado para isso, há impactos.

E, se o FGC passar a ter um papel explícito na agenda de competição, teremos de repensar o tamanho e o desenho do fundo. Porque ele não foi pensado para suportar dois objetivos ao mesmo tempo – crise e competição. Se você der essas duas incumbências, ele precisa mudar de desenho.

Eu não sou contra a agenda de competição, muito ao contrário. Acho que é importante. E não acredito que bancos grandes sejam “contra competir”; eles competem entre si o tempo todo. O que precisamos é de clareza de objetivos. Definidos os objetivos, voltamos para a prancheta para desenhar como atingi-los.

Em 2024 houve uma mudança de regra, que passa a valer a partir do ano que vem. Essa nova regra já ajuda a capitalizar o fundo ou a desestimular um “novo caso Master”?
Eu não acredito em bala de prata para nada nessa discussão. Estamos sempre falando de incentivos e de mau uso da regra, de comportamentos oportunísticos de alguns players. Sempre que colocamos um ajuste, esse grupo vai pensar em outra coisa para fazer. Por isso, não existe um momento em que possamos dizer: “Pronto, resolvemos tudo”.

Não é uma crítica específica a essa regra ou às anteriores. É a natureza do jogo. Há uma parcela de players cuja vida é pensar em como usar as regras de forma oportunista. Dito isso, essa regra ainda não surtiu efeito pleno porque entra em vigor ao longo do tempo. Ela não tem o condão de aumentar sensivelmente as receitas do FGC. Seu foco é moldar comportamentos. E, nesse sentido, já vemos efeitos: alguns bancos estão reduzindo alavancagem, as taxas caíram, não vemos mais bancos pagando 120% do CDI como antes.

Sobre a recomposição do fundo: vocês estimam cerca de R$ 41 bilhões em pagamentos, mas têm R$ 122 bilhões em caixa. Depois de um pagamento desse tamanho, existe alguma urgência para recapitalizar o FGC? Como está sendo pensada essa recomposição?
Não, não há essa urgência. De novo: estamos falando de um reach de cerca de 30% das reservas. Isso permite que, depois de pagar as garantias, a gente sente com todo mundo e proponha um plano de ação. Antecipar a contribuição dos bancos é uma possibilidade, não quer dizer que vai acontecer. A gente trabalha com uma banda de liquidez. E, por desenho, o FGC opera no piso da banda. Quando passa desse piso, os recursos excedentes vão para uma outra conta, o Fundo de Resolução.

Por isso essa razão não “explode” para cima. Se você somar, há cerca de mais R$ 25 bilhões de liquidez nessa outra conta. Então, mesmo que o valor pago fosse maior, ainda teríamos essa outra reserva de liquidez que pode ser puxada, algo entre R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões de disponibilidade adicional.

Em que pé estão hoje os trâmites para o pagamento das garantias relacionadas ao Banco Master? O que já foi feito e o que ainda falta acontecer?
O processo de pagamento tem duas fases. A primeira começa no próprio dia da liquidação. No mesmo ato em que o Banco Central decreta a liquidação do banco, ele já nomeia um liquidante. Que já se tem agora. Esse liquidante é a pessoa que chega ao banco e começa a entender o banco de dados relativo aos produtos elegíveis à cobertura do FGC. Uma parte dessas informações está dentro do próprio banco e outra parte está fora, nas registradoras. Então, ele precisa buscar esses dados também em fontes externas.

Quando reunir todas essas informações, ele começa a compilar os dados. Porque a mesma pessoa pode aparecer em várias pontas, ter títulos comprados em diversas corretoras. Se for em quatro corretoras, para o liquidante, você aparece quatro vezes. Ele precisa pegar tudo isso, tratar e consolidar em um único registro. Esse tratamento de dados leva tempo. E, além disso, é preciso calcular o imposto devido por cada pessoa – seja imposto de renda sobre o rendimento auferido no período, seja eventualmente IOF que ainda ficou por pagar.

Essa primeira fase tem algum prazo formal para ser concluída? E quanto tempo ela costuma levar na prática?
Por norma, não há um prazo definido. O que existe é a complexidade do trabalho. Olhando a experiência dos últimos cinco anos, nas outras liquidações, compilar essa lista de credores levou entre 30 e 40 dias. Então, a nossa estimativa – não é um compromisso de prazo, é uma estimativa – é que, em cerca de 30 dias, o liquidante consiga compilar essa lista de credores.

E a partir do momento em que essa lista chega ao FGC, como funciona a segunda fase?
Aí começa a etapa que é do FGC. E ela é bem mais rápida. Uma vez finalizada a lista pelo liquidante, ele envia para o FGC e nós iniciamos os pagamentos. Essa fase, em geral, leva dois dias úteis. Então, quando somamos as duas fases, trabalhamos com um cenário de algo entre 30 e 40 dias para iniciar os pagamentos. Esse é o nosso cenário base.

O que pode atrasar esse cronograma? Quais são os principais elementos de risco nesse processo?
Um exemplo: o liquidante começar a olhar os dados cadastrais e encontrar indícios de fraude. Isso é um elemento de risco que pode alongar o tempo necessário para compilar a lista. A chance de isso acontecer é baixa, eu não vejo grande risco nesse ponto, mas são situações possíveis. E, enquanto ele não tiver segurança sobre a qualidade dos dados, não consegue fechar essa primeira fase.

Tem surgido propaganda de alguns distribuidores dizendo aos clientes para indicar conta em determinada instituição no aplicativo do FGC. Como vocês veem esse movimento?
A orientação do FGC é muito clara: a pessoa deve indicar qualquer conta de sua titularidade, no banco ou instituição de pagamento que ela quiser. Em qualquer banco, em qualquer IP, em qualquer lugar. Essas campanhas refletem o interesse comercial de quem quer receber os recursos, mas o ponto central é que a escolha é do investidor.