A longa disputa no Congresso Nacional entre segmentos do setor elétrico brasileiro, mergulhado numa das maiores crises das últimas duas décadas, entrou numa nova fase.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) decidiu na semana passada iniciar protocolos de cortes de energia em usinas maiores de geração distribuída (GD) para amenizar o impacto na estabilidade da rede, ameaçada pelo curtailment – cortes de geração renovável das usinas eólicas e solares centralizadas por sobreoferta.
O anúncio, após reunião a portas fechadas que contou com participação do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) e distribuidoras de energia de todo o País, vai afetar as chamadas “usinas tipo 3” - fazendas solares, usinas de biomassa, PCHs (pequenas centrais hidrelétricas) e CGHs (Centrais Geradoras Hidrelétricas) -, que estão ligadas diretamente às distribuidoras e fora do controle do ONS.
Se a medida anunciada não surtir efeito nos cortes por curtailment, a Aneel vai tentar controlar a geração de energia por parte de outra fonte também ligada às distribuidoras, os painéis solares instalados em casas, prédios e empreendimentos – a chamada MMGD (mini e microgeração distribuída).
Medidas técnicas à parte, a decisão da Aneel foi anunciada após semana de embates entre entidades do setor, motivadas pela aprovação da MP 1.300, que instituiu a tarifa social. Agora, o foco político no Congresso se volta à MP 1.304, com temas controversos que ampliam a divisão do setor – como o crescimento da GD, impulsionado por subsídios.
Com prazo apertado para votação até 7 de novembro, a MP 1.304 deve herdar propostas de reforma retiradas da MP 1.300 para viabilizar a tarifa social. A solução política apenas adiou o embate entre segmentos.
Especialistas ouvidos pelo NeoFeed admitem que a nova MP precisa avançar na extensa agenda de problemas que ameaçam a segurança do setor.
Atualmente, grandes usinas renováveis centralizadas têm sofrido restrições de despacho em períodos de sobreoferta ou por limitações de transmissão, ao passo que pequenos geradores de GD conectados diretamente às distribuidoras, via painéis solares, seguem injetando energia.
Dentro do ONS, há uma preocupação com os cortes efetuados por conta da geração distribuída, que não está conectada à rede da entidade. “Essa geração distribuída entra no sistema e tira a carga da geração centralizada”, diz ao NeoFeed um integrante do ONS, que preferiu não se identificar. “Quando temos um excedente de geração, precisamos cortá-la, isso em escalas cada vez maiores.”
A decisão da Aneel dá musculatura ao ONS para conseguir algum controle sobre as empresas de geração distribuída. A Cemig – distribuidora que atua em Minas Gerais – noticiou que está desenvolvendo a capacidade de monitorar e controlar a GD, podendo, sob ordem do ONS, cortar a geração.
A empresa já apresentou ao ONS um plano de ações, detalhando a tecnologia e os equipamentos necessários para viabilizar esse controle. No órgão há um debate sobre a criação de uma nova entidade para avançar nas atividades da geração distribuída.
Carlos Evangelista, presidente da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD), defende que a Aneel e ONS devem ter controlabilidade de todo o sistema. Ele sugere a criação de “uma entidade neutra, o DSO (Distributor System Operator),” que funcionaria como um operador de sistema de distribuição, para gerenciar a rede de distribuição sem conflito de interesses.
Evangelista critica a tentativa de imputar à MMGD os prejuízos do curtailment. “É injusto que grandes investidores queiram dividir perdas com quem produz sua própria energia, amparado pela Lei 14.300, de 2022.” Há também queixas sobre demora de até um ano para autorização de operação pelas distribuidoras, reforçando a necessidade de regras claras.
A dificuldade das grandes geradoras mobiliza o ONS. Técnicos defendem dividir custos com GDs. O lobby já movimenta bancadas no Congresso, onde a disputa nas MPs é por quem ganha mais – ou perde menos. “Há uma guerra entre rede centralizada e GD”, diz o representante do ONS. “A discussão é até onde vai a cauda do curtailment e se atinge a microgeração.”
Mobilização
Com a GD na mira, a disputa entre lobbies do setor elétrico no Congresso Nacional pela aprovação da MP 1.304 – que foi elaborada com a missão de reformar o setor – adquire nova dimensão.
Prejuízos do curtailment, custo de subsídios, política tarifária e demora na abertura do mercado de baixa tensão estão levando o sistema ao colapso, como evidenciado pelo apagão de 2023. Estudo da Abrace Energia aponta que ineficiências e subsídios custarão R$ 103,6 bilhões em 2025, 26% da conta de luz dos consumidores.
Outro estudo, divulgado pela consultoria Volt Robotics mostra que, entre janeiro e agosto, foram descartados 17,2% de toda a geração solar e eólica que poderia ser produzida no País. Esse nível de restrições de despacho de energia já é 230% superior ao ocorrido em todo o ano de 2023.
De outubro de 2021, quando os dados passaram a ser disponibilizados pelo ONS, até agosto de 2025, os prejuízos causados pelo curtailment chegam a R$ 6 bilhões, sendo R$ 3,2 bilhões apenas este ano.
A aprovação das propostas da MP 1.304, que já recebeu 435 emendas, é consenso entre os agentes do setor. Mas os lobbies no Congresso tendem a esticar a corda até o último minuto, ameaçando manter tudo como está. Conflitos de interesse podem barrar itens urgentes, como o teto de gastos da CDE, que limita subsídios que impactam a conta de luz.

Outra opção é tirá-los do texto e encaixá-los na pauta de uma terceira medida provisória correlata, a MP 1.307, cujo foco é a alteração da legislação das Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs), visando à instalação de data centers, com uma exigência fundamental para as novas empresas instaladas nessas áreas: o consumo exclusivo de energias renováveis.
Donato Filho, CEO da Volt Robotics, defende que a MP 1.304 aprove medidas urgentes. Ele destaca o curtailment como exemplo: “Em agosto, as usinas solares sofreram cortes em 36% de seu potencial de geração e, entre as eólicas, os cortes chegaram a 21%.” No total do mês, foram cortados 5,8 mil MW-médio, 7% do consumo do Brasil – o equivalente a deixar o Paraná no escuro.
O fenômeno ocorre por sobra de energia pela manhã, injetada pela energia solar barata e subsidiada, e pela falta de expansão da rede. Segundo Donato, a causa mudou: em 2022, 70% era falta de rede e 30%, sobreoferta; em 2023, 40% falta de rede e 60% sobreoferta.
O especialista propõe medidas que podem ser tomadas em conjunto. Para a geração, por exemplo, propõe incentivar hidrelétricas a gerar menos de manhã e mais à tarde e modular a atuação das térmicas, gerando menos energia de manhã.
Para o consumo, ele sugere incentivar o usuário a deslocar seu consumo para a manhã. “Uma proposta muito interessante é acelerar a implementação da chamada tarifa inteligente pelas distribuidoras, barateando o custo da energia que o consumidor paga pela manhã”, diz Donato Filho.
Outra discussão urgente é o limite de custo para subsídios da CDE, que em 2024 foi de R$ 40 bilhões e pode chegar a R$ 50 bilhões em 2025. A MP prevê que, acima de certo limite, os beneficiários arquem com os custos. Apesar de polêmica, a medida é vista como necessária.
Donato acredita que, apesar dos lobbies, é possível montar uma agenda mínima para resolver questões urgentes.
Paulo Pedrosa, presidente da Abrace Energia – que reúne mais de 50 grupos empresariais responsáveis por quase 40% do consumo industrial de energia elétrica do Brasil – também vê a MP 1.304 com esperança.
“Finalmente o setor elétrico está acionando seus anticorpos contra essa doença que pode levar o sistema ao colapso e está encarecendo e carbonizando nossa energia, e há enorme convergência técnica na visão dos planejadores, operadores e reguladores do sistema, é uma visão compartilhada pelas equipes da Fazenda, Indústria e Comércio e Minas e Energia”, diz Pedrosa.
“Agora precisamos ir todos juntos para o enfrentamento político no Congresso, dialogando e mostrando aos parlamentares que todos vão perder se essa doença não for contida para o setor recuperar sua saúde”, complementa.