Em 1969, uma exposição no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro mostrou ao público 200 desenhos de Tarsila do Amaral (1886-1973). Algum tempo depois, essas preciosidades acabariam no armário de um colecionador, tão ciumento que não deixava nem a mulher manuseá-las e se recusou a permitir que as mesmas passassem a constar do catálogo raisonné da artista.
São obras incríveis que abrangem várias fases de Tarsila, das décadas de 1910 a 1940. Quando, em 2018, um marchand amigo meu disse que contava com a coleção em sua galeria, fui lá conferir pessoalmente. Na época, eu não me via aberto a novas aquisições, considerava meu acervo já completo.
Os desenhos estavam em uma pasta, montados exatamente da mesma forma como foram apresentados na exposição do fim dos anos 1960. Juntos e intactos. Fiquei surpreso com a qualidade do conjunto. Empolguei-me com a possibilidade de comprá-los. Mas, como negociador, era preciso manter a frieza e não externar os sentimentos.
Conversei com a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral, que tinha sido a curadora daquela exposição do MAM do Rio. Aconselhei-me também com a curadora Regina Teixeira de Barros. Ambas enfatizaram que seria importantíssimo para o FAMA (Fábrica de Arte Marcos Amaro), ter esse conjunto — o caráter singular e fundamental de tais desenhos dentro da produção da artista é inestimável.
E não estamos falando de qualquer artista. Autora de algumas das obras mais importantes da história da arte brasileira, Tarsila do Amaral foi uma das principais pintoras da primeira metade do século 20. Com uma obra revolucionária, contagiante e universal, ela representa vigorosamente o Brasil no mundo. Sua genialidade pode ser comparada a da mexicana Frida Kahlo (1907-1954) e a da americana Georgia O’Keeffe (1887-1986).
Mas havia um porém: o estado de conservação não era dos melhores. O antigo proprietário tinha deixado o material intocado, é verdade — mas dentro de um armário, sem as condições ideais de armazenamento. Além de comprar as obras, necessitaria planejar um investimento para recuperá-las.
Decidido, comecei a negociação. Não foi fácil. No meio do processo, o Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York pagou 20 milhões de dólares por uma tela de Tarsila, inflacionando os preços de toda a produção da artista. Houve reajuste no valor pedido pelos desenhos, é claro. Mas eu já sentia que precisava ter essa coleção.
Dois anos depois, finalmente, voltei para casa com os desenhos. A satisfação era enorme mas nem houve tempo para celebrar: a prioridade passou a ser o plano de restauro da coleção. Convidei Aracy e Regina e, sob a supervisão delas, contratamos três restauradores para a empreitada.
Reuníamo-nos em minha casa. E nos debruçávamos por horas e horas sobre cada imagem, analisando minuciosamente o que precisava ser feito. Então cada restaurador levava para seu ateliê um lote de cerca de 30 desenhos, a fim de realizar o trabalho. Confiava plenamente neles, mas confesso que ficava aflito com essas idas e vindas: o conjunto ainda nem sequer contava com seguro.
No entanto, eu não me sentia plenamente satisfeito. Resolvi então comprar outros três desenhos de Tarsila, dois abrangendo sua fase antropofágica e outro de uma viagem que ela havia feito à União Soviética. Acreditava que esses momentos importantes de sua vida não estavam devidamente representados na coleção.
Depois de 50 anos longe do público, agora todos esses desenhos podem ser conferidos em exposição no FAMA Museu. Pessoalmente, não escondo o entusiasmo e a alegria de tê-los como parte do acervo de minha instituição. Sem sombra de dúvidas, o conjunto é um destaque importantíssimo — seja pela diversidade cronológica, temática e conceitual, seja pela grandeza de Tarsila do Amaral.
*Marcos Amaro é artista plástico, colecionador e empresário. Ele também é presidente do FAMA Museu e Campo e membro dos conselhos do MAM e do MASP.