O historiador francês Alain Corbin, de 87 anos, tem uma sensibilidade curiosa ao escolher temas pouco usais para seus livros. Algo do tipo “por que ninguém pensou nisso antes?”. Depois do sucesso de suas História de Silêncio (saiu no Brasil em 2021) e História da Ignorância, ele lança em português História do Descanso.
Ele destaca que o descanso é algo nada tem a ver com lazer, que o substituiu, ocupou seu tempo e invadiu seu espaço, segundo suas palavras. “Quase não falamos mais de descanso, mas sim de momentos de relaxamento; o que equivale a substituir a fadiga por tensão, desconforto, por exemplo ‘burnout’".
Sua intenção é provocar o leitor a descobrir o descanso e a viver a vida de forma diferente – em momento de transição da humanidade para a tecnologia digital. “Redescubra o que realmente significa descanso”, recomenda.
Ele diz que buscar a solidão, para alguns, rezar ou não para outros, meditar, descansar ou caminhar foram as tantas maneiras de restaurar o ser imaginadas e testadas desde a pré-história da humanidade. “Esta história é um chamado para vivermos de forma diferente a nossa relação com trabalho, cansaço, tempo.”
Corbin é professor emérito da Universidade Panthéon-Sorbonne e membro do Institut Universitaire de France. Lançado no Brasil pela Editora Vozes, o livro do consagrado historiador francês apresenta aspectos sociais da história do descanso, do repouso ao longo do tempo e da história do lazer. “As definições, as figuras do descanso não pararam de variar ao longo dos séculos; e, com muita frequência, de se imbricar, de se superpor, de se combater.”
O livro de Corbin é, ao mesmo tempo, simples, profundo e inteligente. Para recuperar o marco inicial do tema, ele mostra que o descanso aparece pela primeira vez vinculado à religião e moldou o comportamento ocidental: em Gênesis, na passagem em que Deus descansa no sétimo dia após a criação do mundo. É a base do Shabat, um dos pilares da lei judaica, um lembrete semanal da Aliança.
O Domingo cristão é considerado, lembra ele, parcialmente seu herdeiro, exceto que, para os teólogos, não é o último dia da semana, mas o primeiro, em referência ao momento que deu início à Criação em Gênesis, quando Deus concebeu a luz e, em antecipação, a ressurreição de Jesus, como explica o historiador, que evoca “o impulso criativo divino, que inaugura uma nova transferência de energia e inicia um novo ciclo”.
Descrito pelo jornal francês Le Monde como “uma joia de erudição, digressões acadêmicas e humor”, História do Descanso faz pensar como o assunto envolve todos os aspectos da vida, da cultura e do trabalho até o cemitério, sempre lembrado como “campo de descanso”. Ou o lugar do “descanso eterno” para os que morrem. Não raro, diz-se que fulano não morreu, “foi descansar”.
Fora do campo religioso, com o passar dos séculos, o descanso ganhou outros significados até chegar à era industrial e do trabalho. Filosoficamente, pode ser a escolha de se colocar fora, em retirada ou desligando-se das vaidades do mundo para encontrar a tranquilidade ou rezar para se preparar para a morte, como fez o imperador Carlos V (1500-1558) – no auge do seu poder, ele abdicou e se retirou para um mosteiro.
Corbin lembra que nunca é fácil deixar para trás as tentações e o barulho do mundo. “Nada é tão insuportável para o homem como estar em completo descanso, sem paixões, sem negócios, sem entretenimento, sem aplicação”, observou o matemático, físico e filósofo Blaise Pascal (1623-1662), citado por ele. "Para Pascal, o oposto do repouso é a inquietação. Não é cansaço. É a agitação da Corte, da cidade, não ficar em repouso em casa porque o homem tem medo de se encontrar em si mesmo!"
Para ele, à primeira vista, o conceito de cansaço é muito simples. Mas quando se estuda numa perspectiva histórica, vê-se que o significado da palavra foi sendo modificado. Durante mais de 1000 anos, até o Renascimento, por exemplo, os cristãos almejavam o descanso eterno, a salvação após a morte, o réquiem – que significa descanso – que ainda hoje é lembrado nos velórios.
No século XX, o descanso era visto como um remédio para o cansaço. Está ligado à civilização industrial, à divisão do tempo com os três oitos, que Charlie Chaplin mostrou no filme Tempos Modernos. Corbin conta que o cansaço surgiu no final do século XVIII e desde a escola, no fim do século XIX, as pessoas alertavam para o excesso de trabalho e a explosão do cansaço.
Mas, antes disso, existiram interstícios nos quais encontramos descanso. “Temos a impressão de que o camponês do século XVII procurava descansar, isso não é verdade. Ele odiou isso. O que era característico do ambiente agrícola, como no artesanato, é que os tempos de descanso foram inculcados na atividade”.
O historiador destaca que dormir não é descansar. “Você deve ter notado que os três-oito dia são: oito horas de trabalho, oito horas de descanso e oito horas de sono. Distinguimos claramente entre descanso e sono”. Além disso, completa ele, durante o século XVIII, o aparecimento de novos móveis que se adaptaram a uma ostensiva e alegada indiferença colocou o corpo “em um estado de êxtase”.
Desde a invenção do sofá, à espreguiçadeira, passando pela cadeira de balanço e pela rede, “há toda uma série de móveis que permitem um descanso mais agradável e profundo, sem dormir”.
O descanso foi tão importante no mundo de antes, exemplifica, que invadiu toda a criação artística na segunda metade do milênio anterior. “A pintura representou cenas em que se via um personagem recolhido em si mesmo, longe da labuta.” A literatura também evocou esses instantes. Corbin, no entanto, quis privilegiar as fontes não ficcionais para analisar como as crenças sociais e humanas construíram-se, pouco a pouco, sobre o tema.
Nesse sentido, negócio, trabalho e qualidade de vida se entrelaçam. Para Corbin, o descanso torna-se, desde então, uma injunção nas escolas como nas fábricas. Ele entra na lista das reivindicações prioritárias. Torna-se um objeto político, e uma série de leis lhe são dedicadas no Ocidente.
No decorrer do século XX, a necessidade do descanso muda de natureza aos poucos: o cansaço psíquico tende a monopolizar sua urgência. “Quase não se fala mais de descanso, senão em momento de relaxamento; o que acaba por substituir o cansaço por uma tensão ou um mal-estar, a exemplo do burnout”, escreve.
Segundo ele, abandonamos essas variações com a evocação do grande século do descanso que culmina – e teria terminado – no fim dos anos de 1950. Essa foi a década do “sea, sex and sun”, da moda das licenças remuneradas e do triunfo do flerte, outro símbolo desse tempo, que impunha uma forma suave do desejo e da relação sexual nascida a bordo dos transatlânticos e nas cidades à beira d’água no fim do século XIX.
Serviço:
A história do sossego
Autor: Alain Corbin
Editora Vozes
200 páginas
R$ 55,00