"Talvez eu não pinte, talvez eu semeie”, diz Juliana dos Santos. Não é apenas uma metáfora. É literal. A artista trabalha em colaboração com a flor Clitoria ternatea, de um azul intenso. Primeiro, um pulso rápido no liquidificador para soltar as pétalas; depois, água sobre o tecido. Com as mãos, sopra e pulveriza os fragmentos da flor sobre a superfície, como uma abelha que poliniza um campo. No lugar do pólen, o que se espalha é a cor sobre o branco.
“Eu não estou pegando uma tinta e dispondo numa superfície com um gesto de pintura. Ao pegar a pétala de flor e trabalhar com esse vento, ver a água dissipando as cores das pétalas... estou trabalhando mais uma lógica de semeadura”, explica Juliana ao NeoFeed.
Durante cinco dias, ela esteve ao lado dos funcionários da Pinacoteca do Estado de São Paulo, “semeando” duzentos metros quadrados de algodão cru para a mostra Temporã, em cartaz na galeria Praça da Pina Contemporânea. Cobriu chão e paredes, transformando o espaço em instalação imersiva. A iniciativa faz parte da residência de ateliê da Pinacoteca em parceria com a Chanel, voltada a mulheres artistas. Juliana é a primeira participante.
“O trabalho da Juliana é como uma plantinha”, diz Lorraine Mendes, curadora da mostra, ao NeoFeed. “Se você coloca em um vaso pequeno, ele vai crescer até determinado tamanho. Se colocar em um vaso maior, ele vai dar mais mudas, crescer mais e com mais volume.”
E bota volume. Em setembro, mês do início da primavera, Juliana colheu seus frutos. A galeria Luisa Strina anunciou sua representação, e ela apresentou Sopro, aragem, viração na 36ª Bienal Internacional de São Paulo.
A instalação é composta de sete painéis de 4 por 3,20 metros cada, tingidos de tinta acrílica e semeados com a flor. Juliana investiga dois tempos da cor: o vegetal e o industrial. “O que fica depois que o azul da clitória se vai? Qual é o tempo da cor?”, ela pergunta.
Formada pela Unesp, com mestrado em Arte e Educação e doutorado em Artes Visuais pela mesma instituição, Juliana, 37 anos, entende que seu trabalho surge no encontro com o outro. “Não existe obra sem considerar a dimensão relacional”, diz.
Tanto Temporã quanto Sopro, aragem, viração nascem a partir da sua relação com a flor azul. “Para mim, a flor da clitória, de fato, um ser vivente ali, que performa e convoca as pessoas a um estado de presença, uma partilha do sensível”, diz Juliana. “A flor faz com que o público se afete — tanto pela prática quanto pela memória, pela possibilidade de elaboração de algo novo.”
O chá azul
Há cerca de uma década, a artista trabalha com a flor, mas a relação com o azul vem da adolescência. Aos quinze anos, ao se converter ao budismo japonês, aprendeu a meditar e, durante uma prática, visualizou um azul muito intenso. “Passei por um processo meditativo em que a cor que eu via tinha exatamente a mesma vibração do azul da flor”, lembra.
Em 2016, um amigo lhe ofereceu um chá de clitória, bebida do mesmo azul intenso que havia visualizado durante a meditação. Juliana se perguntou: “Qual é o sabor do azul?”. Três anos depois, no Sesc Pompeia, realizou a performance Comer e beber o azul, oferecendo ao público a bebida e tapioca tingida com a infusão da flor — uma experiência sinestésica com a cor.
A partir de 2021, durante uma residência no Instituto Goethe, em Salvador, Juliana conseguiu expandir a pesquisa. Na Bahia, conheceu Nilton Cesar dos Santos e Edilene Costa de Jesus dos Santos, cultivadores da clitória em São Félix, no Recôncavo.
Até então, as flores vinham da China — caras e sofridas da viagem, já chegavam oxidadas. Ter um fornecedor local, que compreendesse as especificidades do trabalho, permitiu à artista mergulhar mais fundo no estudo do azul.
E, além da clitória, a água se tornou parceira. “Eu passo a investigar a água como elemento de condução, de nascimento de uma forma”, comenta. Mais do que cor, seu trabalho é sobre o tempo. O processo de oxidação da flor faz com que o azul fique amarronzado. “O azul é uma cor que não se pega, é uma cor imaterial”, conclui.
A cor, em sua obra, se torna ponte para reflexões sobre memória, culturas e relações. Juliana dialoga com artistas consagrados — dos experimentos com o azul de Yves Klein (1928–1962) à entrega física do dripping de Jackson Pollock (1912–1956). O americano dizia: “Eu não pinto a natureza, eu sou a natureza.”
Na arte moderna, essa afirmação soava como um gesto de fusão entre corpo e matéria. No trabalho de Juliana, ele é e também colabora com a natureza. Sua prática é tanto gesto quanto matéria viva: o tempo da flor, o sopro e a água que espalham o pigmento.
Tradições africanas
E suas referências ultrapassam a história da arte ocidental. Juliana também se conecta às tradições africanas de tingimento em índigo e às raízes do blues, ritmo imortalizado no trompete de Miles Davis (1926–1991).
“O azul virou uma mediação para pensar questões complexas, até existenciais. Em alguma medida, quando eu falo do azul, estou perguntando: quem tem direito à individuação? Quem tem direito à singularidade?”, reflete.
Antes do encontro com a clitória, Juliana trabalhava sobretudo com fotografia, investigando memórias familiares e de pessoas negras. Foi com esse trabalho, aliás, que expôs pela primeira vez na Pinacoteca, na mostra Enciclopédia Negra, com o retrato de Caetana, mulher escravizada que, no século 19, se tornou símbolo de resistência ao recusar um casamento arranjado por seu senhor, no interior paulista. A obra hoje faz parte do acervo do museu.
“Eu estava cansada de sentir que meu trabalho precisava caber dentro de uma regra — de uma demanda poética, estética ou formal — que atendesse uma generalização do que era ser um artista negro”, afirma.
Ao escolher trabalhar com a flor e a cor azul, Juliana questiona essa lógica. Ela ressalta que um trabalho não-figurativo também pode ser político. “A luta por ser uma artista negra é, também, a luta por poder ser a artista que a gente quiser ser”, ressalta, negando inclusive rótulos de abstração. “Eu nem acho que meu trabalho é abstrato; acho que é orgânico.” Orgânico como tudo que pulsa sobre a Terra.