O telefone fixo está de volta. Pois é, aquele mesmo — com fio, que precisa ser discado e não nos permite ver com quem estamos falando. Tendência retrô das gerações Y e Z? Que nada! Tendência, sim… mas, entre pais preocupados com o impacto dos smartphones no bem-estar emocional de suas crianças.
De uns três, quatro anos para cá, começaram a pipocar nas redes sociais testemunhos de mães e pais sobre o resgate dos aparelhos tradicionais. Despretensiosos, os comentários foram se avolumando e se espalhando… Estados Unidos, Canadá, Inglaterra… Uns inspirando os outros, formaram-se grupos, organizaram-se estudos acadêmicos e até fundaram-se startups focadas em fazer da antiga tecnologia a base para a comunicação segura do futuro.
A retomada dos telefones fixos vem no rastro de uma onda de inquietação em torno dos perigos da infância hiperconectada. Um movimento impulsionado pelo explosivo A geração ansiosa, do psicólogo americano Jonathan Haidt, lançado em 2024.
No livro, o professor da Stern School of Business, da New York University, traz dados aterradores: quanto mais as crianças e adolescentes mergulham nas telas, mais cresce a incidência de distúrbios psiquiátricos. Ansiedade, depressão, automutilação e suicídio — sobretudo entre as meninas.
O alerta de Haidt motivou, por exemplo, a criação do Landline Kids, da cidade de South Portland, no estado americano do Maine, uma das organizações mais influentes na retomada da antiga forma de se comunicar.
Em julho de 2024, a primogênita de Caron Morse pediu de presente de aniversário de 10 anos um telefone. A mãe atendeu o desejo da menina e lhe deu um aparelho cor-de-rosa… fixo. Profissional da área de saúde mental, Caron sabia: se sua filha fosse a única entre os amigos a ter o telefone, não funcionaria.
Ela então contou aos vizinhos seu plano e os incentivou a fazer o mesmo. Muitos aderiram à ideia imediatamente e, em dois meses, eram cerca de 20 famílias. Agora, a Landline Kids se dedica a orientar outros pais a seguir na mesma linha.
A princípio, pode parecer coisa pequena — papo de pais “alternativos”, em descompasso com seu tempo. Ao contrário.
Habilidades cruciais
O telefone fixo pode ter um impacto profundo no desenvolvimento infantil ao facilitar o aperfeiçoamento de capacidades cruciais para a formação de adultos independentes e autoconfiantes.
“Adoro a criatividade dos pais que querem que seus filhos tenham uma infância de verdade”, elogia Haidt, em post no Instagram.
“O telefone fixo estimula o desenvolvimento das habilidades de conversação, além de aprimorar a escuta. E, com a capacidade de atenção diminuindo mais e mais, essas crianças também estão cultivando tanto a habilidade de ouvir quanto a concentração e a empatia — recursos pessoais valiosos em um mundo cada vez mais digital.”
Sem as distrações das mídias sociais, dos jogos e outros conteúdos, os pequenos aprendem, por exemplo, a decodificar os sinais verbais mais sutis. Há outros benefícios. Ligações fixas, por exemplo, exigem que as crianças tenham anotado ou memorizado os números dos amigos e parentes.
“Migrar para telefones fixos representa um salto conceitual tão grande quanto qualquer outro que já tenham enfrentado: a incrível roleta-russa de ter de atender um telefone para descobrir quem está do outro lado da linha, a experiência da mediação — ter de cumprimentar uma mãe e um pai e pedir educadamente para falar com o colega, por exemplo”, defende a escritora inglesa Emma Brockes no artigo Worried about your child's screentime? Get a landline ["Preocupado com o tempo de tela do seu filho? Contrate um telefone fixo", em tradução livre], publicado no jornal The Guardian.
No início, as meninas e meninos costumam ter dificuldades para usar a velha nova tecnologia. “Os pais podem precisar criar explicitamente um ambiente para que as crianças aprendam a lidar com o aparelho”, lê-se na “cartilha” da organização New Canaan Unplugged, de Connecticut, nos Estados Unidos.
Os relatos na internet sobre a primeira vez dos pequenos em uma ligação telefônica são divertidos. Alguns berram, imaginando que só assim conseguirão se fazer ouvir. Outros perguntam onde seu interlocutor está. Ora, ele só pode estar em casa… o telefone é fixo. Mas não demora muito para que eles dominem a tecnologia.
Ao dispensar a necessidade da intermediação dos adultos, os aparelhos contribuem também para o exercício da independência da garotada. Os pais comemoram. Afinal, eles se livram da função de “telefonistas" dos filhos — o que, convenhamos, pode ser muito aborrecido.
Chet Kittleson sabe do que se trata. Pai de um menino de oito anos, ele perdeu a contas de quantas vezes teve de parar o que estava fazendo para ligar de seu celular para os amigos do garoto. E como ele resolveu o problema?
Em 2022, Kittleson se juntou a Graeme Davies e Max Blumen e o trio fundou Tin Can Kids. Sediada em Seattle, a startup desenvolveu uma linha de telefones fixos coloridos, no formato de lata — referência àquela brincadeira tradicional de falar à distância usando duas latas e barbante.
Os aparelhos da Tin Can Kids custam em média US$ 75 e, desde seu lançamento, a empresa levantou cerca de US$ 3 milhões junto aos investidores de risco, segundo a plataforma PitchBook.
Os novos aparelhos são antigos no conceito, mas, no modo de funcionar, usam os recursos da revolução digital. Alguns operam por meio de chips de celular e outros via wi-fi.
Córtex pré-frontal maduro
Os pró-telefone-fixo não têm a ilusão de que seus pimpolhos nunca usarão um smartphone — ainda que muitos sonhem com isso. O que eles querem mesmo é adiar, ao máximo, esse “encontro”. De modo que, quando a hora chegar, seus filhos estejam preparados para enfrentar o universo digital.
Do ponto de vista da neurociência, faz todo o sentido. “Quanto mais tarde for o contato do jovem com o celular, mais condições ele terá de lidar com a tecnologia de maneira equilibrada, comedida”, diz a psiquiatra e psicoterapeuta Nina Ferreira, ao NeoFeed. “E isso acontece porque ele já tem um cérebro mais autorregulado.”
O córtex pré-frontal, a porção cerebral responsável pelo controle do impulso, tomada de decisão, avaliação do custo-benefício e autoconfiança, é “pouquíssimo” desenvolvido até por volta dos 15, 16 anos, explica a médica, sócia-fundadora da clínica LuxVia, em São Paulo.
“Assim, se o jovem tiver contato com o smartphone apenas a partir desse momento, com a personalidade mais sólida, com mais controle sobre as próprias emoções, a probabilidade de uso abusivo e de dependência é menor”, completa Nina.
Não é fácil. Se uma criança ou adolescente é o único sem celular em um ambiente onde todos estão mergulhados nas telas, naturalmente se sentirá excluído. Por isso, os especialistas são unânimes em defender a força das ações coletivas. Se, por outro lado, todos têm telefone fixo... alô, quem fala?