A vida de humorista do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky durou mais de duas décadas. Ao longo desse período, fazendo piada com os políticos, conquistou uma legião de fãs na Ucrânia e na Rússia. Até que lhe sugeriram se tornar um deles. E o comediante não achou má ideia.

Para receber 73% dos votos e conquistar o cargo mais alto do país, Zelensky fez três promessas: colocar fim à disputa pela Criméia com Vladimir Putin, acabar com a corrupção e promover a renovação política da Ucrânia.

Quem conheceu Zelensky de perto percebeu o poder de sua autoconfiança e vaidade para superar a absoluta falta de tato político para governar. Correspondente da revista Time na Ucrânia e na Rússia, o jornalista Simon Shuster era uma das pessoas próximas do presidente.

Ao questionar o então candidato sobre o que ele faria caso ganhasse a eleição, ouviu como resposta: “Vamos ver, e se não descobrir, contrato pessoas que digam o que devo fazer.” O tom era meio de brincadeira, mas nem tanto assim. Aos poucos, Shuster percebeu que o político tinha muita, mas muita confiança em seu charme e carisma.

Zelensky chegou a dizer que precisaria de um único encontro com Putin para negociar a paz. Nessa ocasião, ele olharia no olho do líder russo, contaria uma piada e o conflito estaria terminado. Em cinco anos de guerra pelo controle da região leste da Ucrânia, cerca de 10 mil ucranianos morreram.

Como presidente, o ucraniano pediu, insistiu por um encontro com Putin, mas só foi recebido pelo russo oito meses depois de sua posse, em dezembro de 2019. Zelensky tentou uma piada, mas não funcionou. A Ucrânia não passava de um peão no tabuleiro das grandes potências, como observa Shuster.

Até o dia em que Putin decidiu aniquilar o vizinho e invadiu o país. Era fevereiro de 2022. E o mundo parou para ouvir Zelensky, agora um homem motivado e obstinado – desprovido de qualquer graça.

Essa descrição minuciosa e profunda do líder ucraniano fez a crítica internacional definir o livro O showman: Os bastidores da guerra que abalou o mundo e forjou a liderança de Volodymyr Zelensky, de Shuster, como “um relato monumental” da invasão da Ucrânia e da criação de uma nova liderança política.

Com 420 páginas, a obra é lançada no Brasil pela Record (R$ 104,90, a versão impressa, e R$ 53,91, a digital).

Fim da piada

A vida de Zelensky, na verdade, deu uma virada com a anexação da Criméia, em 2014, pelas tropas de Putin. Na ocasião, o comediante decidiu que desaceleraria seus negócios na Rússia. Dizia que não podia subir em um palco para fazer os russos rirem depois do que Putin havia feito. Para ele, foi uma facada nas costas de um irmão.

Nesse período, Zelensky foi à tevê não para fazer piada, mas um apelo ao líder russo: “Não coloque nosso país de joelhos, não coloque nosso povo de joelhos.” “Aquele foi um momento decisivo para a sua carreira política”, diz Shuster.

Logo depois de assumir a presidência, apesar da corrupção, da briga pela Criméia e tanto outros problemas, por arrogância ou ingenuidade, Zelensky tinha certeza de que o modo com o qual ele sempre se colocou no mundo, não precisaria mudar.

“Sua vida de artista tinha lhe ensinado o necessário para que desempenhasse o papel de presidente e ele pretendia continuar sendo a pessoa que sua experiência tinha forjado”, lê-se em O showman.

Tudo mudaria em 24 de fevereiro de 2022, quando as tropas russas tomaram a Ucrânia. Aí, conta Shuster, Zelensky surpreendeu a todos. As maiores mudanças são o foco do livro e ocorreram nos primeiros meses da invasão.

Capa do livro lançado pela Record (Imagem: Divulgação)

O jornalista descreve o presidente como “teimoso, confiante, vingativo, impolítico, destemido a ponto de ser imprudente, resistente a pressões, e severo com os que atravessavam seu caminho, ele canalizou a indignação e a resiliência do seu povo e as expressou ao mundo com clareza e propósito, tornando-se um símbolo do tipo de vigor que todo líder gostaria de possuir quando chamado a cumprir seu dever”.

Mas foi sua vocação para showman que tornou Zelensky tão eficiente na guerra contra os russos. O presidente criou para si uma imagem autoestimulante. Ele tinha um papel a representar, tendo o planeta como plateia.

“Por mais de uma década, a especialidade de Zelensky era tirar sarro dos políticos e ele jamais se posicionava se era a favor da Ucrânia viver à sombra da Rússia ou se aproximar da comunidade europeia”, observa o autor.

Os detalhes do desenrolar da guerra são quase inacreditáveis. Por achar que a invasão não ocorreria, Zelensky não se preparou e se escondeu em um bunker. No segundo dia, porém, decidiu que precisava falar ao mundo. E foi para as redes sociais e para a televisão.

Uma semana depois, cansou-se daquilo: “Eu preciso vivenciar essa invasão do mesmo modo que nossos soldados, contra a insistência de seus seguranças. Chegou tão perto das linhas de combate que um atirador russo poderia tê-lo localizado e eliminado”, conta Shuster.

Zelensky, sem dúvida, descobriu que sabia usar todos os meios midiáticos para se posicionar. Um dos momentos dramáticos foi quando ele, em 4 de abril de 2022, descreveu que se deparou com centenas de mortos – sinais de tortura, os corpos mutilados.

Ele explorou ao máximo o episódio, diariamente ia gravar vídeos no local. As imagens eram largamente divulgadas em Nova York para que o Conselho de Segurança da ONU e os líderes europeus apoiassem sua causa.

Em dois meses, teria levado 30 delegações estrangeiras ao local, para que sentissem o cheio de morte. “Ele disse que foi extremamente eficaz para garantir que quando voltassem para as suas capitais, não retomassem à normalidade de suas vidas. ‘Quando você mesmo vê, você sabe, você sente’.”

Quando o combate começou, Zelensky deu carta branca aos altos escalões militares. Eles comandariam a luta em campo, enquanto ele próprio se concentrava em manter a Ucrânia no noticiário e convencer o mundo a ajudar o país.

Passados dois anos, a guerra segue, em um país exausto. Mas seu líder se mantem firme. E pensar que, no início do conflito, muitos apostavam: o comediante Zelensky não duraria dez dias como presidente, em conflito com Putin.