BERLIM - Nenhuma mulher até hoje conseguiu subir ao pódio como maestra titular da Orquestra Filarmônica de Berlim, possivelmente a de maior prestígio no mundo. Só mesmo nas telas, onde a proeza é alcançada pela personagem-título de “Tár”, drama que concorre a seis prêmios Oscar neste domingo, incluindo o de melhor filme e o de melhor atriz, com Cate Blanchett.
“É por isso que insisto tanto em dizer que a obra é de ficção. Isso é ainda uma fantasia”, afirmou a australiana Cate Blanchett, atraída pelo papel de Lydia Tár justamente para esquentar o debate sobre sexismo. Ela mesma não tinha ideia dos obstáculos ainda enfrentados pelas maiores regentes da atualidade.
“Há condutoras com conquistas extraordinárias, como a de Simone Young, em Hamburgo, e a de Nathalie Stutzmann, em Atlanta”, afirmou em um evento em Berlim com cobertura do NeoFeed. A primeira foi maestra titular da Orquestra Filarmônica de Hamburgo, na Alemanha, de 2005 a 2015. Já a segunda assumiu no ano passado o mesmo posto na Orquesta Sinfônica de Atlanta, nos EUA.
"Ainda não vimos é uma mulher comandar, como mostramos no filme, uma espécie de pináculo entre as orquestras europeias (que é a de Berlim).” disse Cate, que também olhou para o passado para compor a sua personagem.
“Uma das primeiras coisas que fiz na preparação foi assistir ao documentário ‘Antonia: A Portrait of the Woman’ (1974), o que foi muito educativo”, contou a atriz, referindo-se à holandesa Antonia Brico (1902-1989). Ela foi uma das primeiras maestras da história, em época em que era raro uma mulher ser admitida em conservatórios de música.
“Para a minha vergonha, eu nunca tinha ouvido falar de Antonia”, comentou Cate, lembrando que a condutora praticamente tinha de implorar para conseguir reger orquestras. “É desolador acompanhar no documentário as oportunidades perdidas. Não por Antonia, mas pelos homens que comandavam as instituições naquela época e que se recusavam a capitalizar sobre o talento dela.”
Ainda assim, Antonia estreou como regente profissional, como convidada, na Orquestra Filarmônica de Berlim, em 1930, o que foi um marco. “Foi importante avaliar a época de Antonia para entender quanto tempo uma mulher levou para subir ao pódio como maestra titular de Berlim, ainda que a trajetória de Lydia seja fictícia”, afirmou Cate, na capital alemã.
A atriz voltou recentemente à cidade, onde “Tár’’ foi rodado, para a premiére local do filme, dentro da programação do 73º Festival de Cinema de Berlim. Antes da sessão de gala, a atriz foi a atração de um evento da Berlinale Talents, no palco do Teatro Hebbel.
Pouco depois do encontro de Cate com o público, o longa com quase três horas de duração foi exibido em caráter “hors concours” no Berlinale Palast, na Postdamer Platz, a 650 metros da sede da Filarmônica.
Como raramente vemos mulheres no topo da música clássica, o filme que continua em cartaz no Brasil não se limita a simplesmente a apresentar uma maestra de sucesso. Como muitas vezes ocorre com os condutores, que se julgam intocáveis graças à genialidade musical, Lydia abusa do poder no cargo, reproduzindo o comportamento de lideranças masculinas.
E o fato de a história se desenrolar no cenário da música clássica, restrito e elitista, a abordagem tóxica é facilitada ainda mais pelo fascínio que os condutores exercem sobre os músicos. Eles são temidos e, ao mesmo tempo, adorados pelos membros da orquestra – talvez por guiá-los pelo universo dos compositores que transcenderam o tempo.
“A ideia foi apresentar uma mulher no topo de uma estrutura de poder. A sua jornada permite que a plateia transite pelo poder para entender melhor como ele funciona”, afirmou o diretor do filme, Todd Field, que acompanhou Cate em Berlim.
“Uma hierarquia cultural como uma orquestra é o local perfeito para examinar isso por apresentar divisões (de acordo com o grupo de instrumentos e com o prestígio da posição ocupada por músicos)”, completou o cineasta.
Lydia Tár é uma regente no auge da carreira, uma lenda viva da música erudita por ser a primeira mulher titular no pódio da orquestra de Berlim. Enquanto promove o seu recém-lançado livro de memórias, “Tár on Tár”, ela se prepara para executar a Sinfonia Nº 5 de Gustav Mahler.
Mandona, a regente acaba deixando o ego gigante e também a libido tomarem a frente. A ponto de ser acusada de comportamento impróprio e assédio sexual. Suas vítimas são geralmente as mulheres mais jovens da orquestra. Como Olga (Sophie Kauer), a recém-chegada violoncelista russa.
Todos ao redor de Lydia são manipulados, a começar pela esposa e violinista Sharon (Nina Hoss), com quem a maestra parece levar um casamento de interesse, por esta ser alemã. O mesmo acontece com a assistente pessoal Francesca (Noémie Merlant), que é forçada a ajudar a regente a esconder provas comprometedoras, após uma ex-discípula e amante de Lydia cometer suicídio. Para piorar, a jovem deixa um bilhete acusando a maestra.
“Lydia parece se esquecer de que o seu instrumento é humano, algo volátil e imprevisível”, contou Cate, indicada a um Oscar pela oitava vez na carreira. Ela já conquistou duas estatuetas da Academia: por “O Aviador”, em 2005, como coadjuvante, pela personificação de Katharine Hepburn, e por “Blue Jasmine’’, como melhor atriz, em 2014, no papel da socialite decadente.
Embora “Tár” tenha dado o que falar na mídia e no meio erudito, por apresentar uma mulher com a conduta de um Harvey Weinstein, Cate sempre defende o filme. Principalmente quando este é acusado de antifeminista. “Trata-se de uma reflexão sobre o poder. E poder não tem gênero”, resumiu ela.