Tão logo foi anunciada a morte do compositor e cantor Erasmo Carlos, aos 81 anos de idade, em 22 de novembro, a imprensa se apressou em dizer que desaparecia principalmente um dos criadores da Jovem Guarda.
Referia-se ao movimento musical fundado a partir do programa homônimo da TV Record, que existiu entre 1965 e 1968 e projetou seu nome, o de Roberto Carlos, o de Wanderléa e de mais três dezenas de cantores e grupos vocais que aderiram ao rock juvenil da primeira fase dos Beatles.
Quanta injustiça com o “Tremendão”, um "gigante gentil", com um 1,93 metro de altura, como dizia o título de um de seus álbuns. Erasmo, ao lado de Roberto Carlos, foi fundamental à história da MPB nos últimos 60 anos para modernizar a canção romântica e romper com o formalismo temático melodramático.
Eles se destacaram tanto na melodia quanto em letras existencialistas devastadoras do ponto de pista da emoção, da paixão e da reflexão sobre os relacionamentos, em seis álbuns de Roberto Carlos. No seu caso, o ápice foi o álbum "Carlos, Erasmo", de 1970.
A partir do disco "O inimitável" (1968), de Roberto Carlos, os dois se tornariam uma dupla comparável para a MPB a de John Lennon e Paul McCartney, dos Beatles, porém mais duradoura e com um número impressionante de canções de sucesso.
Erasmo e Roberto jamais disseram quem fazia o que em suas composições, mas Erasmo afirmou que preferia, na maioria das vezes, cuidar letras. O segredo do que acontecia no momento de fazer as músicas alimenta especulações há décadas.
Entre as especulações dos brasileiros, há várias perguntas sem respostas. Um é mais melodista ou mais letrista do que o outro? Um cuida de tudo sozinho e coloca o nome do outro? Sabe-se que, no caso de “Amigo”, Roberto fez a letra inteira e terminou a melodia para homenagear o parceiro, que só a ouviu gravada.
Em sua autobiografia “Minha Fama de Mau”, Erasmo entra superficialmente na metodologia de trabalho da dupla, mas somente sobre histórias já conhecidas. Ele conta que “Sentado à beira do caminho”, por exemplo, foi feita a quatro mãos.
E deu trabalho para ser concluída. Até que o exausto Roberto, depois de dormir um pouco, ao acordar, disse duas frases que completaram a letra da canção: “Preciso acabar logo com isso/preciso lembrar que eu existo”.
De qualquer modo, saiu deles músicas que deram a Roberto o mito de “Rei”. O período de ouro dos dois se deu entre 1968 e 1973. Tanto em seus discos quanto nos do parceiro, Erasmo compôs várias das mais belas canções da MPB de todos os tempos, fortemente influenciadas pela melancolia da soul music americana trazida por Tim Maia.
Muitos críticos consideram a maior de todas “Detalhes” (1972), com versos de sensibilidade rara, construídos a partir de trocadilhos iluminados. E o que dizer de “É preciso saber viver”, “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, “Tanto amor”, “Olha”, “As curvas da Estrada de Santos”, “Cavalgada”, “Emoções”, “Eu te amo te amo te amo” e “Além do horizonte”.
O curioso é que os direitos patrimoniais de quase uma centena dessas músicas não são deles – recebem apenas um percentual de royalties. Há alguns anos, a dupla passou a lutar na Justiça para reaver a propriedade de 99 parcerias.
Em julho deste ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou recurso pela posse de 27 músicas compostas na década de 1960, cujos direitos foram cedidos, na época, à editora Irmãos Vitale S/A. Outras 72 pertencem à Editora Fermata.
Nos dois casos, ainda muito jovens e no início da carreira, eles assinaram contratos vitalícios – que não vencem nunca – em que abriam mão da propriedade para os editores. Seus advogados alegam que eles teriam licenciado e não cedido suas obras integralmente.
As editoras se defendem e dizem que os contratos são bem claros quanto à cessão total dos direitos patrimoniais, o que permite que eles tenham posse das músicas até que elas caiam em domínio público, 70 anos após a morte de seus autores, de acordo com a lei brasileira.
Nos anos de 1980, enquanto os sucessos de Roberto minguavam, Erasmo assumiu o protagonismo pela produção maior e com letras que pregavam igualdade de gêneros, falavam de costumes e eram, quase sempre, bem-humoradas.
Sucessos como “Mulher”, “Dá um close nela”, “Pega na mentira” e “Mesmo que seja eu” foram assinados por ele e Roberto. Na década seguinte, o artista continuou assinar músicas com Roberto e a produzir com parceiros das novas gerações e a manter uma inquietação que o acompanharia até o fim.
Em 62 anos de carreira, iniciada ainda na era dos discos de 78 rotações, Erasmo gravou 33 álbuns, lançados entre maio de 1965 – ano do primeiro LP, "A pescaria com Erasmo Carlos" – até fevereiro deste ano, mês em que lançou o CD "O futuro pertence à... Jovem Guarda". Fez ainda cinco discos ao vivo.
Uma obra vigorosa e brilhante que tem espaço nobre na história da MPB.