Quem nunca ouviu falar em “jornalismo em quadrinhos” pode estranhar porque Pagar a terra, do jornalista e desenhista americano Joe Sacco, foi eleito o livro de 2020 pelo jornal inglês The Guardian e pelo americano The New York Times. Como assim, uma HQ ganhar tamanha honraria e desbancar romances, contos, ensaios e biografias?

Nos últimos 25 anos, graças ao autor, esse estilo vem ganhando status de obra literária. E aparece nas listas dos melhores títulos de ficção e de não ficção. A escolha é justa. Com sua última obra, lançada agora no Brasil, Sacco não só realizou um marco em qualidade e profundidade narrativa, como construiu uma trama de enorme valor humano e de empatia, sem ser apelativo, panfletário ou maniqueísta.

Precursor  de novo modo de apresentar uma reportagem, ele costuma viajar para lugares em conflitos, onde realiza as entrevistas e faz as fotos. Depois, edita e fragmenta as falas das pessoas com as quais conversou em balões e faz as ilustrações a partir das imagens captadas.  É dele também os celebrados Palestina e Notas sobre Gaza.

Publicado originalmente em nove gibis, entre 1993 e 1995, Palestina ganhou uma edição completa em 1996 e recebeu alguns dos mais importantes prêmios tanto dos quadrinhos quanto do mundo literário, como o American Book Award.

Uma década depois, Sacco retomou o mesmo tema, com Notas sobre Gaza, para realizar seu projeto mais ambicioso até então: resgatar do esquecimento quase completo os episódios ocorridos quase 50 anos antes no conflito israelo-palestino.

Lançado agora no Brasil, Pagar a terra tem uma temática diferente. Sacco viajou ao extremo noroeste do Canadá para contar a história dos povos originários da América. Especialmente os Denes, habitantes de uma região rica em petróleo, gás e diamantes.

O jornalista investiga como a ganância dos "brancos" destruiu não só o meio ambiente como aniquilou os costumes e as tradições indígenas.

Desde os tempos imemoriais, os Dene viveram apenas do que a natureza lhes proporcionava, no vasto vale do rio Mackenzie. No arrebatador primeiro capítulo, o autor mostra como a terra sempre foi o elemento central do modo de vida dos indígenas.

Sacco inaugurou o "jornalismo em quadrinhos" com o livro "Palestina (Companhia das Letras)

Como em muitas outras culturas nativas, acreditavam que eram eles que pertenciam à terra e não o contrário. Com a chegada dos forasteiros, porém, tudo isso mudou.

Maravilhados com o que os royalties do petróleo podiam comprar, alguns nativos foram cooptados e se tornam aliados da indústria no processo de  destruição.

Nos capítulos seguintes, Sacco dá voz a diferentes representantes dos Dene. De um lado, aqueles que tentavam preservar a cultura de seus antepassados. Do outro, os que cediam às promessas de fartura e alugam seus terrenos para a exploração dos recursos naturais.

Embora goste do conforto, cujo preço é a destruição ambiental, um deles, Douglas, percebeu o arrependimento de alguns integrantes mais velhos de seu povo. "Eles sabiam que tinham cometido um erro", diz, no livro. Junto com a exploração do petróleo aumentaram os problemas relacionados ao álcool e às drogas e a  prostituição chegou à reserva.

Além de tirar o petróleo, muitos trabalhavam na derrubada de árvores e preparavam a área para a construção dos poços "nos cafundós" de suas terras.

Narra o autor: “Ele não nega que o dinheiro alimenta certas mazelas sociais, mas isso já vinha acontecendo há anos". Entre os mais conscientes, as falas também eram de preocupação: "Isso (também) pode acontecer aqui porque aqui tem muito mais gente e muito mais dinheiro circulando... E tudo isso pode destruir a comunidade".

Sem ligar para as antigas tradições e a preservação da natureza, outro indígena foca nos benefícios tangíveis da relação com a indústria: “A academia que eles construíram e o equipamento de hóquei que foi doado; a manutenção da estrada de inverno, que os moradores de Tulít'a também usam; e sobretudo o dinheiro investido para fazer melhorias nas escolas e reduzir o tamanho das turmas por sala”.

Com 272 páginas, o livro custa R$ 119,90 (Companhia das Letras)

Aos poucos, porém, uma outra narrativa se sobrepõe, a da luta de décadas de grupos indígenas organizados para defender suas terras.

“Para nós, progresso é tornar alguém mais sábio, é viver o mais perto possível da terra e da natureza. O oleoduto significa mais brancos, que serão seguidos ainda por mais brancos, eles ignoram o lado indígena e ficam com tudo para eles”, defendeu o líder indígena Richard Nerysoo, em audiência na década de 1970.

Mas aquela era uma guerra perdida. A cada personagem apresentado na HQ, a catástrofe ambiental se impõe, embora, na aparência, o dito progresso parece seguir seu fluxo.

A mineração trouxe empregos e investimentos, mas também a necessidade de estradas, uso de resíduos tóxicos, a construção de oleodutos.

E tudo isso alterou drasticamente não só lugar, como o de vida dos Dene. Um governo que reivindica a posse da terra, um sistema educacional que não leva em conta as tradições nativas, os estragos pelo abuso de álcool e a tragédia das dívidas bancárias que só crescem.

A partir da voz de chefes indígenas, ativistas, caçadores, padres e representantes da indústria do petróleo, entre outros, Sacco constrói uma história brutal sobre a exploração de recursos naturais, o poder do dinheiro, a trajetória de um povo em conflito com os novos tempos — e sua luta pela sobrevivência.