Se alguém dissesse a sigla “BB” (“Bi-Bi”) na década de 1960, era bem provável que qualquer cidadão urbano da maioria dos países do mundo saberia se tratar da atriz francesa Brigitte Bardot, a mulher mais cobiçada do planeta por pelo menos 17 anos. Quando esteve no Brasil por duas vezes em 1964, foi chamada de “Primeira Dama da França”.

O mais avassalador e devastador símbolo sexual da história morreu no domingo, 28 de dezembro de 2025, aos 91 anos.

Bardot virou lenda - a celebridade reclusa em seu país porque, há 52 anos, vivia isolada, dedicada à causa dos animais. Sua saída de cena aos 39 anos, enquanto ainda atuava por seu talento, irreverência e beleza, foi inesperada — menos de duas décadas depois de estrelar E Deus criou a mulher, filme ítalo-francês de 1956, dirigido por seu futuro marido Roger Vadim.

Escândalo em todo o planeta e um dos propulsores da revolução sexual da década de 1960, o longa começa com a câmera percorrendo bem devagar o corpo da atriz, de 22 anos, durante um banho de sol no quintal de casa. Até parar em seu sorriso para lá de sapeca.

Se, na Bíblia, a mulher foi criada por Deus a partir de uma costela de Adão para ser uma companheira, nas telas, a expressão usada no filme causou polêmica não por blasfêmia, mas por explorar a sensualidade e o poder feminino - algo inaceitável e inadmissível pelos valores morais e cristãos da época.

A jovem atriz, instantaneamente, tornou-se um símbolo sexual europeu e, logo depois, mundial. A obra, porém, foi censurada em muitos países pelo comportamento tido como despudorado da personagem Juliete Hardy. Por outro lado, ninguém podia negar o enorme talento de Bardot, que se tornou uma referência cultural por sua sensualidade, liberdade e ousadia.

Juliete Hardy era uma mulher jovem, atrevida e instintiva que chocava o público e causava, especialmente pelas cenas de danças voluptuosas que exploravam a beleza de seu corpo e a liberdade feminina, dona de sua sexualidade, que não pedia desculpas por existir.

Se não bastasse, nos filmes seguintes, Bardot continuou a explorar sua sensualidade, como em Ao cair da noite (1958), em que Roger Vadim a dirige novamente, agora, como uma jovem inocente de um convento que se casa com um rico conde, mas se apaixona por um rapaz do vilarejo. O longa foi promovido como um sucessor atrevido de E Deus Criou a Mulher.

Em Amar é a minha profissão (1958), de Michel Boisrond, ela é uma prostituta que encanta um advogado. A Verdade (1960), de Henri-Georges Clouzot, traz Bardot como uma mulher "avant-garde" - uma jovem julgada pelo assassinato de seu amante. Outro filme notável em que está mais exuberante que nunca, aos 29 anos, é O Desprezo (1963), no qual Jean-Luc Godard a coloca no papel de uma mulher no centro de um drama complexo e sensual, explorando imagem de feminilidade e celebridade da atriz.

No filme coletivo com três diretores Histórias Extraordinárias (1968), Bardot foi dirigida, mais uma vez, por Vadim - os outros diretores eram Federico Fellini e Louis Malle. O longa se tornou antológico com a atriz ao lado de Alain Delon. Em Don Juan (1973), um de seus últimos filmes, ela e Jane Birkin protagonizaram uma cena de sexo que causou escândalo.

"E Deus criou a mulher", de 1956, dirigido por Roger Vadim foi o filme que lançou Bardot ao estrelato

"Minha primeira vida me permitiu vencer nesta segunda. Se eu não tivesse sido Brigitte Bardot e ficado conhecida em todo o mundo, nunca teria feito um décimo do que eu faço agora pelos animais", costumava dizer

"Tive um filho, mas não podemos dizer que esse filho, coitado, tenha vindo na hora certa e me tenha trazido o que me faltava", disse Bardot, em 2021. Nicolas-Jacques nasceu do relacionamento da mãe com o ator Jacques Charrier e foi criado pela família paterna

No início dos anos 1960, Bardot escolheu Búzios, no litoral do Rio de Janeiro, como refúgio e acabou passando uma longa temporada por em companhia do então namorado Bob Zagury

A atriz também esteve no Guarujá, em São Paulo, como noticiou a revista "Extra"

Em 1967, em uma recepção no Palácio do Eliseu, sede do governo francês, a atriz apareceu vestindo calça e jaqueta, enquanto todas as outras mulheres trajavam vestidos

Em 17 anos, Bardot se dividiu entre as carreiras de atriz e cantora. Fez quase 50 filmes e gravou seis álbuns e vários compactos, em um total de 70 canções. Até surpreender o mundo e sair de cena para sempre em 1973, para se dedicar aos animais, depois de ver uma reportagem sobre os massacres de focas.

"Minha primeira vida me permitiu vencer nesta segunda. Se eu não tivesse sido Brigitte Bardot e ficado conhecida em todo o mundo, nunca teria feito um décimo do que eu faço agora pelos animais", declarou à Agência France Press.

Antes de contribuir para a libertação sexual em um mundo polarizado ideologicamente e bastante puritano, ela se soltou nas telas depois de romper com sua “família burguesa” e de se formar dançarina. Estrela com rosto de Lolita e curvas de femme fatale, tornou-se fantasia masculina e alvo das ligas conservadoras, que viam nela um perigo maior que apenas um "sex-symbol".

Nascida em 28 de setembro de 1934, Bardot foi assim definida por Simone de Beauvoir, escritora e feminista: "Ela anda com os pés descalços, ela vira as costas aos vestidos elegantes, joias, perfumes, maquiagem, a todos esses artifícios. (...) Ela faz o que lhe agrada e é isso que é perturbador".

Perseguida por fotógrafos que acompanhavam cada movimento seu, a escandalosa artista perdeu a privacidade e entrou em depressão incontáveis vezes; em algumas delas, tentou o suicídio.

Bardot nunca escondeu seu descontentamento com a maternidade. Em 11 de janeiro de 1960, ela deu à luz um menino, fruto de seu casamento de dois anos com o ator Jacques Charrier, seu parceiro na comédia Babette Vai à Guerra, de 1959.

"Tive um filho, mas não podemos dizer que esse filho, coitado, tenha vindo na hora certa e me tenha trazido o que me faltava", disse em 2021, em uma de suas raras entrevistas. Depois da separação do casal, Nicolas-Jacques Charrier viveu com a família paterna — sem nenhuma proximidade com a mãe. Foi um estardalhaço.

Mas, a atriz não tinha receio de escândalos ou provocações. Casou-se quatro vezes e teve vários casos amorosos.

Em dezembro de 1967, respondeu a um convite do general Charles de Gaulle para uma recepção no Palácio do Eliseu, sede do governo francês, vestindo calça e jaqueta - uma veste no estilo Hussar, enquanto todas outras convidadas estavam de saia ou vestido.

A atriz parecia incorporar para a vida a mesma independência de sua personagem em E Deus criou a mulher — "uma menina de seu tempo, livre de qualquer sentimento de culpa, de tabus impostos pela sociedade", como definiu Vadim.

Bardot vivia confinada no sul da França, entre a sua propriedade "La Madrague", em Saint-Tropez, um vilarejo de pescadores que se tornou nos anos 1950, em parte por causa dela, o lugar preferido do jet set europeu, e no interior, onde possuía uma segunda residência, a “La Garrigue”. “Não vejo quase ninguém", confidenciou alguns anos atrás, afirmando não sentir “mais vontade de ir ao cabeleireiro".

Bardot se definia como combativa. “Não devemos ser passivos na vida. Devemos servir para alguma coisa", costumava dizer. Suas bandeiras de luta eram o fim do abate de animais para rituais, o fechamento de matadouros de cavalos e a proteção dos elefantes africanos. À medida que envelheceu, no entanto, a jovem atrevida do passado demonstrou simpatia por teorias da extrema direita e chegou a ser condenada algumas vezes por incitação ao ódio racial.

Em 2004, por exemplo, em carta aberta, ela escreveu: “Estou cansada de ser governada por muçulmanos na França”. No texto, ela condenava o uso de animais em rituais islâmicos.

Musa do Brasil

Talvez muitos não saibam, mas a atriz teve uma intensa relação com o Brasil, no auge de sua fama internacional de atriz e cantora. A estrela francesa esteve duas vezes no país em 1964 - as duas temporadas em Búzios, no verão e no Réveillon. Mas também foi a São Paulo e se divertiu na Praia de Guarujá, então o point da elite paulistana, como registrou a revista Extra.

No Rio, escolheu Búzios como refúgio e acabou por contribuir para transformar o vilarejo em um dos destinos mais famosos do litoral brasileiro — em gratidão, ganhou uma estátua à beira da praia da Armação, na Orla Bardot.

Essa passagem foi detalhada por Ruy Castro em seu livro A onda que se ergueu no mar, com episódios emblemáticos da bossa nova e o impacto cultural da presença de Bardot em território brasileiro. Ele descreve, por exemplo, o encontro da estrela com Tom Jobim como um dos momentos mais simbólicos daquela época.

Para Castro, o verão “buziano” de 1964 tornou-se um marco da transição de um tempo em que o Brasil começava a ser observado com curiosidade e encanto pelo mundo. Bardot, já uma personalidade mundial, trouxe glamour e visibilidade ao país, enquanto a música brasileira, representada por Jobim e outros nomes da bossa nova, conquistava o exterior com sua sofisticação.

Uma curiosidade de seu relato foi o fascínio que a atriz despertava em grandes figuras nacionais. Principalmente em Pelé, que, garante ele, era apaixonado pela francesinha, embora, na juventude, não pudesse assistir a seus filmes, proibidos para menores de 18 anos.