“Ainda sou a minha maior rival”, diz Simone Biles, a ginasta mais condecorada da história, com 37 medalhas conquistadas em campeonatos mundiais e Jogos Olímpicos. Vinda da americana de 27 anos, no recém-lançado documentário O Retorno de Simone Biles, na Netflix, a frase faz realmente sentido — apesar de muitos atletas dizerem o mesmo, para ilustrar a persistência e a superação necessárias para vencer no mundo do esporte.
Uma das grandes estrelas da Olimpíada de Paris, com abertura em 26 de julho, Simone mostra no filme como veio se preparando para (o que promete ser) a sua volta triunfal à competição, no maior palco esportivo do planeta. Principalmente depois do pesadelo que viveu em Tóquio, em 2020, quando desistiu de várias provas na final geral, alegando sofrer de “twisties’’.
Assim são chamados os bloqueios mentais que fazem os ginastas perderem a consciência de espaço, ficando desorientados no ar, um problema mais comum durante torneios de grande pressão psicológica. É como se a mente e o corpo não conseguissem entrar em sincronia, provocando erros nos saltos e nas manobras e fazendo o ginasta correr graves riscos — já que qualquer movimento malfeito pode resultar em queda mortal.
A primeira parte do documentário, dividido em dois episódios, se concentra na frustração de Simone em Tóquio, quando ela chocou o mundo ao desistir da competição. A ginasta era a grande favorita para as medalhas de ouro que ainda seriam disputadas.
Em imagens de arquivo, vemos o descontrole de Simone e a reação de sua mãe, ao receber nos Estados Unidos o telefonema da filha, arrasada, avisando que não conseguiria continuar. Que ela preferia desistir a fazer “algo estúpido”.
“Foi silencioso. Quase como uma surdez. Se eu pudesse sair correndo daquele estádio, eu teria saído”, lembra a atleta, que se sentiu “prisioneira na própria mente e no próprio corpo”.
Em um vídeo gravado em Tóquio, ela conta ter chegado ao seu limite. “Os bloqueios mentais são assustadores. Estou me perdendo nas minhas habilidades e não entendo como”, diz, chorando.
Além do registro de Simone na época, vemos a atleta nos dias de hoje refletindo abertamente sobre a experiência, no sofá de sua casa, falando para a câmera. Ela recorda o peso que sempre sentiu por ser a maior ginasta do mundo — o suficiente para ela se sentir odiada, muitas vezes.
Entre tantas façanhas, ela entrou para o Guinness, o livro dos recordes, por ter conquistado o maior número de medalhas de ouro de Campeonatos Mundiais de Ginástica Artística, com um total de 23.
Os "demônios"
Também são abordados no documentário os demônios que a ginasta ainda carregava na Olimpíada de Tóquio, por ter sofrido abuso sexual do então médico da equipe de ginástica feminina dos Estados Unidos, Larry Nassar.
Ela foi uma das mais de 300 atletas envolvidas no escândalo, que veio à tona em 2016 e levou à condenação de Nassar a 360 anos de prisão. “Até então, eu não tinha buscado tratamento adequado porque simplesmente achei que eu estava bem”, afirma a ginasta.
Simone não esconde o trauma que a pane sofrida em Tóquio representa até hoje em sua vida. Em uma das melhores cenas do documentário, dirigido por Katie Walsh, ela abre a porta de um “armário proibido”, localizado em um cômodo pouco frequentado da casa.
É lá que ela esconde todo o material dos últimos Jogos Olímpicos. No meio dos uniformes da equipe americana está o collant vermelho, branco e azul da ginasta, que ela mal consegue tocar, fazendo uma careta ao segurá-lo, diante da câmera.
“Eu costumava sentar aqui e chorar muito, perguntando a Deus por que isso aconteceu comigo. Às vezes, isso é necessário para tomarmos o poder de volta”, conta Simone.
Ainda que inicialmente ela tenha sido muito criticada nos Estados Unidos, por ter cedido a um momento de “fraqueza” e ter “abandonado” a equipe, Simone acabou revertendo a situação, recuperando uma imagem positiva por ter aberto um debate público sobre a saúde mental dos atletas, sobretudo os de elite.
O salto Biles II
No segundo episódio do documentário, o foco é sobre o que Simone fez nesses últimos anos, o que incluiu uma pausa no esporte para tratar do bem-estar psicológico, com muita terapia. Ela ainda se casou com o jogador de futebol americano Jonathan Owens e voltou a treinar e a competir.
No Mundial de Ginástica realizado na Antuérpia, no ano passado, a atleta realizou um salto inédito, batizando-o com o seu nome (Biles II), passando a somar cinco elementos homologados no código da FIG, a Federação Internacional de Ginástica.
São muitas as cenas mostrando o treinamento de Simone, com a ginasta totalmente à vontade nos saltos e nos movimentos mais difíceis que precisará repetir diante dos juízes nos Jogos Olímpicos.
“Nós sabemos o que Simone consegue fazer. Esse não é o problema”, diz Celice Canqueteau-Landi, uma de suas treinadoras, já no final do filme. “Só perguntamos se isso vale a pena para ela, do ponto de vista físico e mental. Não queremos sobrecarregá-la’’, completa a técnica, que acompanhará a ginasta em Paris.
Simone, por sua vez, parece ter encontrado o mantra certo, para manter o foco e não ceder à pressão na próxima experiência olímpica.
“Antes dos eventos, eu sempre digo uma coisa às garotas”, conta Simone, habituada a ser o suporte emocional das ginastas com menos experiências nas competições. “Nada muda. Sua ginástica não muda. Só a atmosfera e a arena mudam. Agora, quem repete muito isso, antes de começar, sou eu.”