Quem visitar até sábado (14) a mostra "Tarsila: as duas e a única", na galeria de arte Paulo Kuczynski, em São Paulo, verá apenas duas obras da artista Tarsila do Amaral. Mas duas obras-primas da pintora: "Paisagem com dois porquinhos", de 1929, e "Segunda Classe", de 1933. E quem não ver agora dificilmente verá nos próximos anos.
A primeira, medindo 38,3 x 46,5 cm, é referente à fase Pau-Brasil, em que a artista se dedicou aos temas nacionais com o seu colorido característico. A segunda, de 110 x 151 cm, inaugura a fase social, na qual a artista utiliza tons mais rebaixados e se debruça sobre temas relativos à questão socioeconômica do país. "Segunda Classe" está à venda por um preço estimado em R$ 90 milhões; "Paisagem com dois porquinhos", por R$ 45 milhões.
Em exposição há dois meses, os quadros estão sendo cortejados e conversas estão em andamento. "Estamos apostando no interesse de algum museu internacional", diz o marchand Paulo Kuczynski. "Mas devido à guerra entre Rússia e Ucrânia, está tudo parado no momento."
Se há algo que Kuczynski, de 74 anos, aprendeu em mais de meio século trabalhando no mercado de obras de arte, é esperar o momento certo. Foi o marchand quem negociou o quadro "A Lua", de Tarsila do Amaral, ao MoMA, por US$ 20 milhões. Vendeu a Eduardo Constantino, fundador do Malba, em Buenos Aires, a aquarela "Crianças brincando e o adeus", de Cícero Dias. E a colecionadora cubana Ella Cisneros também já comprou obras de artistas brasileiros com o marchand. Quem hoje vê as cifras milionárias negociadas em seu escritório dificilmente imaginaria que tudo começou com uma espécie de "cheque caução".
Uma aposta de Alfredo Volpi
No fim dos anos 1960, o jovem morador do Aclimação, zona sul de São Paulo, era um estudante do curso de Biologia da Universidade de São Paulo. Envolvido no movimento estudantil da União Nacional dos Estudantes, foi o escolhido pelo professor de física e crítico de arte Mário Schenberg para visitar uma série de artistas que pudessem doar obras para serem vendidas e angariar fundos para o movimento.
Da lista de artistas, um morava a cerca de dez quadras da sua casa: Alfredo Volpi. O jovem ficou tão impressionado com o trabalho do artista italiano radicado no Brasil, famoso por pintar as fachadas de casas com bandeirinhas, que voltou mais vezes ao seu ateliê. Em uma dessas visitas, fez uma proposta ousada: "posso comprar uma obra sua com um cheque e, assim que eu vender, você desconta?".
O pintor aceitou a proposta e Kuczynski "caiu em suas graças". "O Volpi pintava muito pouco, mas tinha uma demanda muito grande pelo seu trabalho, que vendia para pouquíssimas pessoas. Depois que eu comecei a vender seus quadros, ele começou a me indicar para os amigos", conta. Esses amigos eram imigrantes italianos com quem Volpi trocava alguns quadros – que mais tarde, o marchand comprou para vendê-las.
Apaixonado pela pintura de Volpi, Kuczynski abandonou o curso de biologia para se dedicar ao comércio de obras de arte. Ainda no começo da carreira, conheceu o colecionador Theon Spanudis, profundo conhecedor e admirador de Volpi que tinha prioridade de compra nos trabalhos do pintor.
Spanudis tornou-se um fornecedor de obras de arte de Kuczynski. O segundo quadro do artista ítalo-brasileiro que o colecionador deu para o marchand negociar o deixou tão impressionado que não conseguiu vender e comprou para ele mesmo. "Eu brinco que eu sou uma espécie de traficante e consumidor", diverte-se. Assim começou a sua própria coleção.
O grande salto na carreira de Kuczynski foi o momento em que Spanudis entregou a ele um conjunto de cerca de 30 obras obras da fase concretista de Volpi para vender. Uma delas negociou com o colecionador Adolpho Leirner, cuja coleção hoje faz parte do acervo do Museu de Belas Artes de Houston. A venda desse conjunto de obras marca a entrada de vez do marchand no mercado de arte.
A busca por preciosidades
Em 1974, Kuczynski montou com o marchand Gerard Loeb um escritório de arte. O propósito dos sócios era vender apenas obras-primas aos colecionadores. "Eu nunca quis vender obras medíocres", ressalta. "Sempre busquei comprar trabalhos realmente importantes. A fase de grande criação dos artistas, em que produzem obras-primas".
No começo, sem ter acesso aos colecionadores da alta sociedade paulistana, Kuczynski frequentava galerias, leilões e exposições de olho em quem poderia ser um potencial cliente tanto para compra quanto para venda e também para apurar os preços praticados. "Nesse mercado, a coisa mais importante que existe é você ter a informação – sobre o preço, sobre pessoas, sobre tendência. Uma informação pode te dar um ganho extraordinário", ensina.
Até os anos 1970, o mercado de arte no Brasil ainda era muito incipiente. Os compradores de obras eram principalmente os próprios artistas e intelectuais como professores da Universidade de São Paulo, escritores e críticos de arte. Kuczynski visitava as casas da elite intelectual para garimpar obras.
"Eu ia atrás das pessoas que conviveram com os artistas", conta. "O maior prazer que o trabalho me dá é descobrir uma grande obra ainda desconhecida." O marchand se lembra de visitar a casa de uma das filhas do escritor José Lins do Rego, onde viu uma tela de Di Cavalcanti que o deixou impressionado. Tentou comprá-la, mas a herdeira não estava aberta a negociações. Três décadas depois, recebeu um contato para colocar a pintura à venda.
Os clientes são fiéis e atravessam gerações. Já aconteceu algumas vezes de o marchand vender mais de uma vez a mesma obra. Os motivos são diversos: desde um aperto financeiro ou o herdeiro da coleção querer vender as obras da família. "Depois que uma obra entra para uma coleção, ela leva cerca de 30 anos para sair", revela.
Para atender a futuras gerações de colecionadores, Kuczynski já prepara a filha caçula, Anita, 28, que se interessou pelo mercado de arte e há dois anos trabalha com o pai. O marchand atualmente também se preocupa em deixar um legado sobre as principais obras que passam por sua galeria.
Para ficar na história
Desde o início dos anos 2000, Kuczynski tem valorizado o passe das obras que passam por sua galeria montando exposições com catálogos bem cuidados. Para a mostra sobre os quadros de Tarsila do Amaral que está em cartaz, convidou críticos importantes como os brasileiros Regina Teixeira de Barros, Paulo Venancio Filho, Ana Maria Belluzzo e o venezeluano Luis Pérez Oramas, que organizou a mostra individual da artista no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), para escrever textos que acompanham imagens das obras e fotografias da artista no catálogo.
O marchand não obedece à lógica do mercado primário de uma exposição por mês. Só monta uma exposição quando sente que tem obras expressivas para serem mostradas. Kuczynski passou 10 anos reunindo obras do polonês Frans Krajcberg, até apresentá-las na exposição "A natureza como atelier", em 2018. O catálogo caprichado traz um ensaio do cineasta Walter Salles e fotografias de Walter Carvalho. Esta ideia de produzir exposições em sua galeria é relativamente recente.
Kuczynski começou a investir em exposições que apresentam a sua participação na história da arte brasileira em 2004, quando inaugurou a atual sede da galeria, na Alameda Lorena, nos Jardins. Para a abertura do espaço, organizou a mostra "Trajetória - uma coleção imaginária", em que apresentou as obras-primas que mais o emocionaram ao passar por sua galeria. A exposição reuniu trabalhos de artistas como Tarsila do Amaral, Victor Brecheret, Lygia Clark, José Pancetti e, claro, Alfredo Volpi.
"Faço questão de que os catálogos sejam informativos, tenham pesquisa e contextualizem as obras que passam por aqui", explica. "Eu poderia vender as obras e dispersar rapidamente. Mas quando você reúne para exposição e faz o catálogo, isso de alguma forma fica documentado para sempre, fica uma história."