Quando saía à varanda de sua cobertura no Leblon, no Rio, o publicitário Roberto Duailibi - a letra D da sigla DPZ, uma das mais importantes agências da história da publicidade brasileira - voltava-se para o lado direito e avistava o Morro Dois Irmãos, emblemático cartão postal carioca.
Ao retornar seu olhar para o interior do apartamento, tinha a grande satisfação de poder se deparar com essa e outras paisagens da cidade representadas em itens diversos de sua coleção de arte, adquirida ao longo de meio século.
Amanhã (7 de agosto), um conjunto grande desse acervo - 140 peças, cerca de um terço de toda a sua coleção - vai a pregão na casa Leilão de Arte, de James Lisboa, em São Paulo, com transmissão online.
A pintura modernista brasileira domina o conjunto - com criações de nomes de grande vulto, entre eles Candido Portinari e Tarsila do Amaral, assim como trabalhos de mestres estrangeiros, a exemplo de Salvador Dali.
O valor estimado dessas obras é de R$ 1,5 milhão, sendo o maior lance inicial - de R$ 400 mil - pertencente ao óleo sobre tela ‘Retrato de Aloysio Graça Aranha’ (1932), de Portinari.
Para o leiloeiro James Lisboa, independentemente do resultado financeiro, há um fato histórico no leilão: a reunião de um conjunto de itens de uma mesma pessoa que durante 50 anos não tinha exatamente o desejo de colecionar, mas sim de ter objetos que traziam satisfação a ela pela imagem ou pela obra em questão.
“Flanando pelo Rio, por exemplo, eu às vezes entrava em uma galeria e a obra cantava para mim, pedia para ser comprada”, disse Roberto Duailibi, em entrevista ao NeoFeed.
Ao lado de Francesc Petit e Roberto Zaragoza, Dualibi fundou em 1968 a DPZ, criadora de campanhas icônicas como as do mascote da Sadia, a ave com óculos e capacete de motoqueiro, ainda hoje parte das campanhas da marca.
O publicitário, que está prestes a completar 88 anos, conta que os itens estavam dispersos em alguns dos cinco endereços distintos onde viveu, de uma morada no bairro do Morumbi, em São Paulo, onde se estabeleceu por 46 anos, a uma casa no Guarujá e a cobertura em que morou no Rio, entre os anos 1970 e 1990, quando o trabalho o levava a um intenso vaivém na ponte aérea.
Quando as comprou, “evidentemente, essas casas precisavam ser decoradas”, havendo, no entanto, algumas peculiaridades na seleção sobre o que iria e para onde. No Guarujá, por exemplo, predominava a arte popular brasileira. No Morumbi, tinham maior presença as esculturas, devido às dimensões da construção.
À medida que foi envelhecendo e se aposentou, há cerca de 20 anos, Duailibi começou a vender as propriedades e foi juntando uma coleção enorme de arte. "O (leiloeiro) James Lisboa teve a ideia de fazer dois ou três pregões, sendo que este é o primeiro", conta ele. "Eu comprava arte num insight - era olhar a obra e gostar. Evidentemente estudava a obra do autor".
Muitos dos artistas cujas obras ele comprou, e que irão a leilão, eram conhecidos seus, com quem tinha um ‘contato fraternal’, e os trabalhos eram vendidos “a preços de amigo”.
Arcangelo Ianelli, por exemplo, foi seu vizinho em São Paulo, e estavam ainda em seu círculo social Glauco Rodrigues e Sergio Telles, entre outros.
O publicitário afirma que tinha particular interesse pelo trabalho de Carlos Balliester, ‘pouco valorizado no Rio’ e que pintava navios de guerra da Marinha Brasileira. Como era um pintor por encomenda, diz ele, não desfrutava do devido prestígio.
Também no pregão estão vasos art nouveau de Émile Gallé, um artista francês que, mesmo apaixonado pelo Rio, nunca havia estado na cidade.
Entre os lotes a serem leiloados, há esculturas, figuras orientais, desenhos do cartunista J. Carlos e até mesmo mobiliários, a exemplo de um baú de Sergio Rodrigues.
Alguns Portinari, assim como peças de Arte Sacra, compradas na Bahia, não entraram na leva, por serem itens muito sentimentalmente ‘caros’ ao publicitário.
O leiloeiro destaca do acervo um óleo sobre tela de 1985, de Glauco Rodrigues, um Gallé com quase 60 centímetros de altura, e ainda uma escultura do Bruno Giorgi, outra do Victor Brecheret e mais uma do Júlio Guerra. "São trabalhos que se destacam não pelo seu valor financeiro, mas pelo que representam da trajetória desses artistas", avalia.
Há também muitos itens pessoais, a exemplo dos desenhos de Zaragoza e Petit, seus amigos e sócios na DPZ. “Nas reuniões da agência, eram momentos descontraídos de três executivos”, diz Lisboa. Duailibi explica que esses “doodles” surgiam quando, ao pensarem sobre uma futura campanha, os três faziam rabiscos de caneta ou lápis em folhas de papel.
“Mas os do Zaragoza eram tão bons que se tornavam obras de arte. Terminados os encontros, ele pedia que assinassem, e eles acabaram sendo incorporados à sua coleção.”
Nas artes visuais, a linha do tempo da coleção de Duailibi se encerra antes do surgimento de grandes nomes da produção contemporânea, a exemplo da Geração 80, a qual pertencem Beatriz Milhazes e Daniel Senise.
Entre os artistas com produção mais recente está Ianelli. Segundo Lisboa, o publicitário se interessou, de fato, mais por modernistas e acadêmicos. O convívio com artistas e o colecionismo ajudavam a informar a produção de Duailibi como publicitário, conta ele.
"Eu convivia com gente muito talentosa, tanto redatores quanto diretores de arte. E todos eram colecionadores também. Isso tudo reverberava totalmente em meu processo criativo”, diz o D da DPZ.
Como todos seus filhos herdeiros já têm suas casas montadas, Duailibi temia que algumas dessas peças acabassem ficando sem a acomodação adequada para sua conservação e sem acesso para ninguém.
O publicitário conta, no entanto, que dois netos seus recentemente decoraram suas casas com itens que vieram de sua coleção, como um “conjunto raríssimo de moveis de Joaquim Tenreiro”. As peças do leilão, espera, vão ganhar novos sentidos em outras casas pelo país.