Com o artigo Lost at sea: Where is all the plastic?, publicado em maio de 2004, na revista científica Science, o biólogo marinho inglês Richard Thompson apresentou ao mundo a poluição plástica em uma escala (assustadoramente) nova. Com, no máximo, cinco milímetros de diâmetro, vindos da decomposição de garrafas PET, canudos e sacolas, entre outros resíduos do gênero, os microplásticos contaminam o planeta, sem que a maioria de nós sequer perceba a sua existência.
Desde então, pesquisadores do mundo todo investigam os malefícios causados por essas esferas minúsculas. E eles são muitos, para o meio ambiente e a saúde humana. Vinte e um anos depois do alerta de Thompson, uma equipe da Universidade de Nanquim, na China, volta a soar o alarme: os microplásticos também representam uma ameaça à segurança alimentar global.
Como mostra o trabalho dos cientistas chineses, na Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), periódico da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, por causa da poluição microplástica, as plantas terrestres e as algas (tanto de água doce quanto salgada) perdem de 7% a 12% de sua capacidade fotossintética.
Pode parecer pouca coisa, mas não é. Globalmente, ao longo das próximas duas décadas, essas baixas podem somar 400 milhões de pessoas às 2,3 bilhões que já enfrentam escassez de alimentos, moderada ou grave.
Para chegar a tais resultados, os pesquisadores de Nanquim avaliaram quase 3,3 mil registros científicos, extraídos de aproximadamente 160 estudos, e extrapolaram os dados para as produções mundiais de trigo, arroz, milho, peixes e frutos do mar.
As conclusões são inquietantes. A fotossíntese inadequada compromete de 4% a 14% o rendimento das safras anuais dos três cereais. Entre as proteínas aquáticas, o volume perdido gira em torno de 7% por ano. É comida suficiente para alimentar dezenas de milhões de pessoas.
“A humanidade tem se esforçado para aumentar a produção de alimentos para alimentar uma população cada vez maior, mas esses esforços podem estar também comprometidos pela poluição plástica”, diz Huan Zhong, um dos autores da pesquisa, em comunicado.
A redução de (apenas) 13% nos níveis atuais de microplástico no meio ambiente poderia salvar anualmente até 46,9 milhões de toneladas de arroz, milho e trigo, além de 3,16 milhões de toneladas de peixes e frutos do mar, lê-se no artigo da PNAS.
A ciência já tem bem documentados os principais processos pelos quais os microplásticos reduzem a capacidade das plantas de produzir seus próprios nutrientes.
As partículas poluentes podem bloquear a luz do sol. Ou, quando absorvidas pelas espécies, podem entupir os canais por onde circulam a água e os compostos essenciais ao seu desenvolvimento. O lixo pode ainda alterar a dinâmica do solo, facilitando a entrada de substâncias tóxicas pelas raízes.
Para alguns estudiosos, o trabalho de Nanquim, por se tratar de uma metanálise, exigiria investigações mais aprofundadas para que seus principais números sejam aceitos como previsões robustas. Mas todos são unânimes em defender o valor do levantamento ao propor o estudo do impacto do microlixo na produção de alimentos e, consequentemente, na fome.
Ao fim e ao cabo, a pesquisa chinesa serve como lembrança para a urgência do combate à poluição plástica, outra crise séria do planeta no século 21.
“O lixo plástico é onipresente. Está no ar que respiramos, na comida que ingerimos e na água que bebemos”, lê-se no relatório The Fraud of Plastic Recycling, da ONG americana Center for Climate Integrity. “Um estudo estima que os humanos ingerem até cinco gramas do material por semana; o equivalente a um cartão de crédito de plástico.”
O mundo produz cerca de 430 milhões de toneladas de plástico anualmente; dois terços dos quais, produtos de uso único. Menos de 10%, porém, são reciclados. No Brasil, esse índice é ainda menor: 1,3%. O resto vai parar nos aterros sanitários ou é despejado diretamente no meio ambiente — onde permanecerá por décadas, se desfazendo em microplástico, contaminando solo, plantas, rios, mares, oceanos, bichos e seres humanos.
O descarte correto do lixo e a reciclagem são importantes, claro, mas não resolvem o problema. A complexidade química de alguns itens, que misturam aditivos para lhes dar determinadas cores e formas, torna a circularidade, que já é cara, ainda mais dispendiosa.
A solução para a crise passa pela redução no uso de copos, talheres, pratos e embalagens de plástico, mas também pela transformação da indústria — pela busca de novos materiais, menos poluentes.
“Reguladores, governos e cidadãos precisam urgentemente desligar a maré de poluição plástica em sua fonte, reduzindo a produção de plásticos”, escreve Thompson, no artigo Everywhere we looked we found evidence’: the godfather of microplastics on 20 years of pollution research and the fight for global action, de maio de 2024, na plataforma The Conversation. “O foco deve ser na prevenção, reduzindo a produção global de polímeros plásticos e garantindo que quaisquer itens plásticos que produzimos sejam essenciais, seguros e sustentáveis.”
Para funcionar, no entanto, a ação deve envolver todo o mundo. No final do ano passado, a Organização das Nações Unidas (ONU) reuniu 170 países em Busan, na Coreia do Sul, para negociar o Tratado Global de Combate à Poluição Plástica. Mas o encontro não chegou a nenhum consenso. E o debate em torno do “Acordo de Paris do Plástico”, como a aliança vem sendo chamada, ficou para 2025.