"Ferve-se em água, com sal, gengibre, salsa, folhas de cebolas, aipo e pimenta, uma posta de carne. Estando cozida, tire-se-a e frige-se em gordura de porco, e deita-se no caldo, uma porção de serralha picada. Ferve-se um pouco e deita-se-a no prato coberto de pão ralado. Tendo posto a carne no meio, serve-se."
Carne de porco do matto guisado com serralha é um entre os centenas de pratos descritos em Cozinheiro nacional, uma preciosidade da culinária brasileira, escrita entre 1860 e 1880. De autoria desconhecida, trata-se do primeiro livro de receitas editado no país. Com 509 páginas, “ornado com estampas finas”, é quase um manifesto em defesa da biodiversidade de nossos ingredientes. Em especial, dos vegetais, “que a natureza com mão liberal e pródiga, espontaneamente derramou sobre seu solo abençoado”.
Durante muito tempo, antes da adoção da monocultura restringir a dieta a basicamente produtos cultivados em escala industrial, espécies como serralha, mangarito, taioba, ora-pro-nóbis, beldroega, capuchinha, tanchagem, bacuri, monguba, jenipapo, ariá... cresciam nos quintais, ruas, parques e praças públicas. Dali para a mesa, era um pulo.
Hoje, porém, elas praticamente desapareceram do cardápio; sobretudo do prato dos moradores dos centros urbanos. Desconhecidas da maioria, viraram agora "plantas alimentícias não convencionais", ou PANCs (conheça algumas delas nas imagens abaixo).
Em tempos de aquecimento global e insegurança alimentar e nutricional, elas são "literalmente a salvação da lavoura", define o biólogo Valdely Kinupp, uma das vozes mais ativas nos estudos desses "vegetais esquecidos", em conversa com o NeoFeed. "As PANCs atendem praticamente todos os 17 ODS [Objetivos do Desenvolvimento Sustentável] da ONU."
Ricas em vitaminas, minerais, proteínas e fibras, as PANCs têm o potencial de aumentar a oferta de alimentos e ajudar no combate à desnutrição — mal com 1,5 bilhão de vítimas no mundo, sobretudo mulheres e criança de países subdesenvolvidos e em desenvolvimento.
Resistentes e fáceis de cultivar, elas proliferam em diferentes ecossistemas e suportam os eventos climáticos cada vez mais extremos. "Tem PANC adaptada a todos os ambientes", diz Kinupp, professor do Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, campus Manaus-Zona Leste (IFAM-CMZL). "Em ambiente salino, arenoso, desértico, montanhoso, aquático... com frio, com geada, com sombreamento quase absoluto ou com insolação total."
Bastante versáteis, as PANCs prosperam nos espaço mais diminutos. Nos vasinhos da sacada dos apartamentos, jardins dos condomínios, hortas comunitárias, terrenos ociosos das periferias... não à toa, muitos as têm como "mato" e "erva daninha".
Por isso, se prestam aos programas de agricultura urbana, levando ingredientes de qualidade aos desertos alimentares, onde a oferta de produtos frescos e saudáveis ou minimamente processados é escassa.
Viva a diversidade
Com tantas qualidades, os vegetais esquecidos podem "revolucionar o futuro da alimentação", argumentam os analistas da FAO, a agência da ONU para alimentação e agricultura. Seu resgate se faz, portanto, urgente.
“Com o apoio de políticas e financiamento adequados, essas variedades poderiam um dia ser reconhecidas no mercado mundial", lê-se em relatório da entidade. Os estudiosos da alimentação defendem em uníssono o cultivo em larga escala das PANCs, com uma cadeia produtiva bem estabelecida.
Mas, atenção: larga escala não significa monocultura, adverte Kinupp. "O que eu defendo é a agricultura biodiversa em larga escala para que as PANCs possam chegar aos supermercados, hortifrutis, mercadinhos e feiras, em qualquer lugar do Brasil e do mundo", afirma. "Ninguém precisa deixar de plantar laranja, arroz, trigo, banana... nada disso. É plantar em consórcio com as PANCs."
A ideia não é usar as PANCs como substitutas para os vegetais tradicionais, mas fugir da monotonia alimentar. "Não podemos perder diversidade alimentícia, o que, com o hábito de cozinhar, contribuiu para a evolução da humanidade", afirma o biólogo. "A diversificação do prato é a diversificação do campo."
Há cerca de 400 mil espécies de plantas descritas pela ciência. Delas, pelos menos 30 mil são comestíveis — das quais, ao menos 20% prosperam em solo brasileiro. Um estudo da Universidade Federal de Alagoas aponta: 10% da biodiversidade vegetal do país tem potencial alimentar.
Apesar de tamanha riqueza, a mesmice tomou conta de nossos pratos. Cerca de 90% de todas as calorias consumidas no planeta vêm de apenas 15 culturas. E, metade da população global tem sua alimentação baseada no cultivo de arroz, milho e trigo, como mostra o relatório State of World’s Plants and Funghi, do Royal Botanic Gardens, Kew, na Inglaterra — um levantamento minucioso, do qual participaram 210 pesquisadores, de 97 instituições, em 42 países.
Depender de um número tão restrito de produtos oferece sérios riscos à segurança alimentar e nutricional. Lembre-se do acontecido na Irlanda, entre 1845e 1849. Um fungo destruiu as plantações de batata, base da alimentação do país, e os irlandeses mergulharam na Grande Fome — de 20% a 25% da população morreu no período.
Cegueira botânica
O termo “plantas alimentícias não convencionais” foi cunhado em 2007, pelo biólogo Kinupp, em sua tese de doutorado em fitotecnia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ainda que muitas sejam consumidas em suas regiões de origem, são chamadas “não convencionais” porque a maioria dos consumidores não as conhecem.
Aos poucos, porém, essa “cegueira botânica”, começa a diminuir. Pesquisadores da alimentação, gestores públicos e chefs vêm trabalhando para que as PANCs sejam resgatadas do esquecimento e trazidas para o cotidiano.
Dono do restaurante D.O.M., em São Paulo, Alex Atala é um deles. Entusiasta dos ingredientes brasileiros, ele frequentemente inclui plantas não convencionais em suas receitas.
No menu degustação, em comemoração aos 25 anos da casa, criado no ano passado, três dos 12 pratos levam PANCs — como a delicada crepioca de ora-pro-nóbis, enrolada enrolada em forma de capelete e recheada com abóbora assada e carne seca desfiada.
Na pizza desenvolvida para a Baco, de Brasília, o chef incluiu, entre outras, a beldroega, uma folhinha de textura crocante e sabor levemente azedo.
No mundo ideal, as PANCs não existiriam. Seriam tão comuns como nas receitas do livro Cozinheiro Nacional, do século 19. Quiçá um dia tenham o mesmo destino da pitaia.
Nativa da América Central e do nordeste da América do Sul, a fruta de aparência exótica e rica em antioxidantes já foi uma não convencional. No Brasil, desde 2022, 6 de março é dia de comemorar a pitaia.