Está em curso uma revolução na medicina. Graças aos avanços das tecnologias digitais, os pacientes são hoje “codesigners” de seus cuidados, como já descrito por analistas da consultoria McKinsey. Ultraconectados, eles se informam, querem saber, opinar e decidir junto.
Em The Patient Will See You Now: The Future of Medicine Is in Your Hands, o cardiologista americano Eric Topol define os tempos atuais como o “momento Gutenberg” da medicina. Se, no século 15, a imprensa popularizou os livros, fazendo com que o conhecimento deixasse de ser acessível apenas à classe sacerdotal, as inovações 4.0 dão aos pacientes um controle sem precedentes sobre sua própria saúde.
Um dos sinais mais emblemáticos desse movimento é o crescimento do mercado de testes caseiros. O setor, com receita de US$ 16,6 bilhões em 2021, deve movimentar US$ 45,5 bilhões, até 2031, no mundo todo. Até lá, está previsto evoluir a uma taxa de crescimento anual composta de 10,5%, informam pesquisadores da Allied Market Research.
Outro exemplo? A healthtech americana Vivoo foi uma das startups vencedoras do CES 2024 Innovation Awards, prêmio para as empresas mais promissoras do ecossistema de inovação global. Fundada em 2017, em São Francisco, na Califórnia, a empresa acaba de lançar um exame de urina para o diagnóstico de infecção do trato urinário (ITU).
De alta incidência, a doença atinge 150 milhões de pessoas, em todo o mundo, a cada ano. A infecção é predominantemente feminina. As mulheres têm 50 vezes mais probabilidade de desenvolver o problema do que os homens. A partir dos 50 anos, porém, a ocorrência entre eles aumenta, relacionada sobretudo a disfunções prostáticas.
Fundada pelo CEO George Radman, pela COO Gozde Buyukacaroglu e pela CTO Miray Tayfun, a Vivoo já levantou US$ 20,4 milhões, em duas rodadas de financiamento, informa a plataforma Crunchbase. Entre os 15 investidores estão, as empresas de venture capital Draper Associates, Global Ventures, Otsuka Holdings e Halogen Ventures.
Rápido e preciso
O autoteste de ITU da startup californiana é muito semelhante aos exames domésticos de gravidez. A leitura dos resultados, porém, é feita com um aplicativo, por meio da câmera do celular. Ferramentas de processamento de imagens e machine learning garantem a precisão e rapidez nas análises, promete a empresa em comunicado.
Além do autoteste para infecção urinária, a healthtech de São Francisco já dispõe de mais dois produtos. Um deles, feito também a partir da urina, avalia nove biomarcadores relacionados à saúde nutricional do usuário. São averiguadas as concentrações de sódio, cálcio e magnésio, entre outros parâmetros.
O outro exame da Vivoo destina-se ao público feminino e mede o PH vaginal. A informação sobre o grau de acidez é importante, por exemplo, na prevenção a infecções. Uma parceria com a atacadista farmacêutica Target e sua rede de distribuição global faz com que a startup de São Francisco chegue a várias partes do mundo. A base de clientes da healthtech conta atualmente com 200 mil pessoas, informa a empresa.
A polêmica
Os testes domésticos sempre estiveram cercados de polêmica. Alguns estudiosos questionam: “Como os exames não substituem o diagnóstico feito por um médico, para o quê servem?” Outros rebatem: frequentemente, as pessoas “imaginam” ter uma infecção urinária, mas não se dão ao trabalho de procurar ajuda especializada. Fazer o exame em casa resolveria o problema.
A capacidade de interpretação dos resultados também suscita debates. Uma vez com as análises em mãos, os leigos sabem o que fazer com elas? Várias tecnologias, como as da Vivoo, oferecem conteúdo educacional. Além disso, a digitalização permite o compartilhamento das informações com profissionais de saúde.
Estudos realizados nas décadas de 1980 e 1990, quando a comunidade científica começou a discutir os autotestes para a detecção do HIV, o vírus da aids, mostram que a maioria dos pacientes consegue lidar com o diagnóstico e que a possiblidade de o realizar em casa incentiva as pessoas a se submeter aos exames. Não fosse isso, muita gente nem cogitaria fazê-los.
Além das startups de tecnologia de saúde, gigantes farmacêuticas também se dedicam ao desenvolvimento dos exames domésticos, como Johnson & Johnson e Abbott. As aplicações incluem doença celíaca, distúrbios da tireoide, alergias, níveis de vitaminas e minerais e agora ITU.
Entre os pacientes há também resistências. A maioria delas caiu por terra com os testes caseiros para a detecção da covid. Naquela época de caos e medo e de isolamento social, em muitos momentos, não restava outra opção que não fosse testar em casa.