Pela nossa Constituição Federal (Preâmbulo, Artigos 5º e 6º), segurança pública é um direito fundamental e condição essencial para o exercício pleno da cidadania, com liberdade, equidade racial e de gênero; paz e valorização da vida e do meio ambiente. E, como direito, segurança precisaria se traduzir em políticas públicas que se guiem pelos princípios da transparência, da participação social e de modelos de governança democrática e eficiência.

No entanto, a despeito das mudanças incrementais verificadas nas últimas décadas, que aumentaram a eficiência operacional e tecnológica das forças de segurança do país, a persistência de opções político institucionais que valorizam um modelo de segurança reativo, reprodutor de violências e iniquidades e que foca no combate bélico ao crime e ao delinquente, impede que o tema seja tratado como uma política social universal e que precisa atingir toda população brasileira.

A primeira grande dificuldade é pensar que segurança pública se resume à atividade policial. Não, não é isso. Segurança pública é tanto um direito, quanto ela conforma um campo organizacional, à semelhança do que ocorre com o sistema financeiro, por exemplo. E o campo organizacional da segurança pública reúne cerca de 1.500 agências públicas que possuem o chamado “poder de polícia”, que consiste na prerrogativa de limitar direitos e estabelecer limites ao exercício de liberdades individuais – poder esse que está definido no Código Tributário Nacional, de 1966, e não foi revisitado após a Constituição Federal de 1988.

As polícias são apenas a face mais visível de uma intricada arquitetura institucional. E isso acontece até porque a nossa própria Constituição define, em seu artigo 144, que as polícias são as instituições públicas encarregadas de prover ativamente segurança pública e manter a ordem pública. Mas isso só pode ser feito em coordenação com diversas outras agências, órgãos e Poderes da República.

Hoje, o Brasil conta com 86 instituições policiais entre federais, estaduais e do Distrito Federal. E cada uma delas opera em uma lógica bastante autônoma e independente, com diferentes competências legais e jurisdições territoriais.

Diante da dificuldade de integrar, articular e coordenar federativamente as ações de todas essas instituições, várias foram as tentativas feitas ao longo das duas últimas décadas para se levar adiante uma reestruturação do sistema de segurança pública brasileiro.

Porém, nesse processo, ficou claro que o Brasil convive com um sistema de vetos perfeitos, parecido com o que ocorre com o Conselho de Segurança das Nações unidas, onde todos concordam com a necessidade de reformas, mas não há consenso sobre o que colocar no lugar e, portanto, cada stakeholder veta a proposta do outro e nada avança.

O Brasil convive com um sistema de vetos perfeitos, parecido com o que ocorre com o Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde todos concordam com a necessidade de reformas, mas não há consenso sobre o que colocar no lugar

Em um momento de eleições gerais, de profundo tensionamento institucional, tudo isso nos faz reconhecer que a governança das polícias do país foi negligenciada e fez com que tenhamos um quadro de diferentes ordenamentos vigentes e de dissonância entre diferentes esferas e instâncias de coordenação das polícias que incentiva a fragmentação, a autonomia e o insulamento.

Para cumprir seu papel de ajudar a construir um ambiente de referência e cooperação técnica na área da segurança pública, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública elaborou, e tornou público a todas as candidaturas majoritárias, o documento “Segurança Pública como Direito Fundamental - Diretrizes e Propostas” que elenca 15 diretrizes programáticas como ponto de partida e três propostas de medidas concretas de curto prazo.

Da repactuação federativa das atribuições das agências de segurança pública, passando pela efetiva implementação do SUSP (Sistema Único de Segurança Publica) e pelo fortalecimento de políticas de prevenção e de proteção social a grupos vulneráveis, as macrodiretrizes propõe pontos de partida estruturantes.

Nas propostas concretas, constam criação de institutos como o INESP (Instituto Nacional de Estudos sobre Segurança Pública ) e autarquias especiais, como a Escola Nacional de Altos Estudos em Segurança Publica (ENAESP), cuja contribuição central seria avançar na integração das policias, aprimorar a formação policial ampliando a compreensão dos agentes de segurança sob o aspecto da cooperação.

Hoje, temos um ambiente perfeito para a instrumentalização política e para a disputa de moralidades. Nele, o que vale é mentalidade do combate ao inimigo interno, que é, no limite, aquela que está por trás de quase toda a legislação infraconstitucional brasileira, uma vez que até hoje não fizemos reformas estruturantes no sistema criado em 1969. Mas o que isso significa?

Na prática, a ideia de segurança pública como direito fundamental não é posta em prática e nós não mudamos o fato de a história política e social do país ser a história social da violência. E, ao não mudarmos esse cenário, não nos damos conta do quanto o debate sobre o tema foi capturado por um vórtice que nos joga continuamente para o passado.

Na prática, a ideia de segurança pública como direito fundamental não é posta em prática e nós não mudamos o fato de a história política e social do país ser a história social da violência

Para ilustrar, vale notarmos que, para além das fartas evidências e dos números disponíveis, a ineficácia e os danos colaterais de políticas de segurança pública baseadas em confrontos bélicos de alto impacto pode ser sintetizada numa reflexão simples, externa ao eterno pêndulo “bandido versus cidadão de bem”.

Se segurança pública é um direito fundamental, ações nos morros cariocas, como as na Vila Cruzeiro ou no Alemão, realizadas nos últimos meses, jamais deveriam ser autorizadas sem que medidas de proteção à população que neles residem fossem previamente planejadas.

Nossas polícias são muito competentes naquilo que compreendem como suas atribuições e possuem pessoal altamente qualificado e tecnologias avançadas. Assim, se elas estão optando por confrontos abertos, independente dos impactos na vida das comunidades, é porque estão se sentido autorizadas moral e politicamente para agirem enquanto tal. O problema é que esse modelo deixa intactas as estruturas de lavagem de dinheiro e corrupção que movem a economia do crime e as faz crescer como nunca.

É verdade, as facções prisionais e as milícias não podem matar impunimente policiais e sequestrar a liberdade das comunidades. Mas, se as comunidades já haviam sido sequestradas pelo domínio armado das facções e das milícias, o fato é que a liberdade de milhares tem sido duplamente roubada pela decisão de as polícias as enfrentarem em campo aberto com a justificativa da urgência da morte de alguns.

Como resultado, vamos invisibilizando a cidadania e alienando a soberania do país. Sem combater a capacidade econômica de facções de base prisional e milícias, o país vê a violência se espraiando para a Amazônia, que sofre por ser rota e hub de escoamento de estimados 50% de toda a cocaína produzida na Bolívia, na Colômbia e no Peru, e para as periferias das metrópoles.

As polícias não geram confiança e o custo social da violência explode, não obstante uma pequena redução das taxas de mortes violentas intencionais, iniciada em 2018. O medo e o pânico começam a se fazer cada vez mais presentes e, como péssimos conselheiros, vão abrindo espaço para políticas populistas e que nada resolvem.

*Renato Sérgio de Lima é diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), organização não-governamental, apartidária, e sem fins lucrativos, que se dedica a construir um ambiente de referência e cooperação técnica na área da segurança pública. Professor do Departamento de Gestão Pública da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e pós-doutorado no Instituto de Economia da Unicamp.