Pepe Mujica nunca demonstrou ter medo da morte. Ao contrário. Deu muito valor à vida. Por sua história pessoal e trajetória política, o ex-presidente do Uruguai sempre valorizou a oportunidade de existir. “Há coisas que não têm preço, há coisas que não se compram. Não podemos ir ao supermercado e dizer: ‘Me dê mais cinco anos de vida’. Temos uma fita que em algum momento vai se cortar”, disse, certa vez.
E Mujica respeitou com dignidade o tempo de sua “fita”. Portador de câncer no esôfago, diagnosticado em 2024, em janeiro passado, quando a doença atingiu o fígado, apesar das 32 sessões de radioterapia, ele pediu aos médicos que não o fizessem sofrer em vão. Sereno, em entrevista ao jornal Búsqueda, anunciou que não seguiria mais com o tratamento.
“Por quê? Porque sou um idoso e porque tenho duas doenças crônicas. Meu corpo não aguenta”, disse ele, avisando que se retiraria da vida pública: “O guerreiro tem direito ao seu descanso”.
Em 13 de maio de 2025, Mujica, aos 89 anos, enfim descansou. Estava ao lado da mulher Lucía Topolanski, o amor de sua vida e companheira de política.
Nascido José Alberto Mujica Cordano, em 20 de maio de 1935, em Montevidéu, vindo de uma família de agricultores, foi um dos principais integrantes do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros, grupo de guerrilha marxista, inspirado na Revolução Cubana. O objetivo era lutar por mudanças na política do Uruguai, no período da ditadura militar no país.
Durante a luta armada, foi ferido com seis tiros. Algumas das balas permaneceram em seu corpo. A ação do grupo era marcada por sequestros e assaltos.
Foi preso quatro vezes. Em duas ocasiões, conseguiu fugir da prisão de Punta Carretas. No último período, foi torturado e detido entre 1973 e 1985, quando foi beneficiado pela lei da anistia. Enfrentou a maior parte da prisão em uma solitária, onde era submetido a falta de água e alimentação.
Mas Mujica não colocava as mãos apenas em armas. Durante muito tempo foi florista, e forneceu o produto para feiras e floriculturas.
Foi eleito presidente do Uruguai em 2010, em uma gestão marcada pela austeridade. Em seu governo de cinco anos, a pobreza no país caiu de 37% para 11%. Também garantiu a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação, a união civil entre as pessoas do mesmo sexo e a descriminalização da produção e comercialização da maconha. Terminou o governo com 65% de aprovação.
Antes de se tornar presidente, havia sido deputado e ministro da Agricultura. Foi eleito senador em 2019, mas renunciou ao mandato em 2020, em meio à pandemia de covid-19, quando tinha 85 anos. “Sinceramente, estou saindo porque a pandemia está me tirando.”
Além de pertencer ao chamado grupo de risco para a doença, Mujica também tinha uma doença autoimune chamada Síndrome de Strauss. Em 2018, ela já havia renunciado à cadeira de senador, justamente para poder descansar, mas foi reeleito novamente antes de decidir, finalmente, se aposentar das urnas.
Passou pela política e saiu incólume, sem qualquer arranhão quanto a enriquecimento ilícito ou qualquer escândalo de corrupção, coisa rara nesse meio. “Quem quiser enriquecer, que enriqueça, mas longe da política”, defendia.
Na época em que foi presidente, doava 90% de seu salário para ONGs que realizavam projetos sociais para pessoas carentes e dizia que o que sobrava era suficiente para sobreviver: “Nós políticos temos de viver como vive a maioria e não como vive a minoria”.
Sua visão de mundo fez dele uma referência global em direitos humanos. Sempre defendeu um ambiente mais justo e trabalhou pela união dos países da América Latina. Na política interna, levou o Uruguai ao posto de país mais liberal da América do Sul ao liberar, em 2012, o aborto até a 12ª semana de gestação, em qualquer circunstância. Dois anos depois, legalizou a maconha.
Não teve sua popularidade abalada nem quando se declarou ateu. “Eu ainda não fui capaz de acreditar em Deus”, disse, em 2012. Mas não deixava de fazer suas súplicas, ainda que não acreditasse: “Se existe um ser tão poderoso, espero que Ele ajude os pobres da América Latina”.
Embora tenha dito que o homem é um “bicho que não pode viver na solidão”, era em sua chácara, nos arredores de Montevidéu, que gostava de ficar, ao lado de Lucia e da cadela Manuela, de três patas, que morreu em 2018. O animal de estimação, inclusive, era presença constante em eventos sociais do então presidente e nas entrevistas concedidas por Mujica.
Tinha enorme carinho pelo seu velho Fusca azul de 1987. Avaliado em US$ 2,8 mil, o preço do veículo não tinha a menor importância para Mujica. Chegou a receber uma proposta de US$ 1 milhão de um xeique árabe pelo carro, mas recusou. Na presidência, dispensou carro oficial e ia aos compromissos com seu próprio automóvel.
Nas últimas décadas, ganhou a simpatia e a admiração dos jovens. Quando esteve no Rio de Janeiro, foi tratado como estrela. Em 2015, reuniu cinco mil pessoas, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), para ouvi-lo falar de política.
O socialista histórico afirmou, no evento, que era necessário corrigir distorções para garantir um mundo mais igualitário. “O problema mais grave da América Latina é a desigualdade. Temos de ter recurso e isso se chama política fiscal. Na América do Sul o rico não paga quase nada”, afirmou.
Durante a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em 2012, no Rio de Janeiro, a Cúpula Rio +20, Mujica fez reflexões sobre o papel das lideranças globais na prática de políticas públicas que garantam uma sociedade mais equilibrada. “Nos deparamos com esta globalização, que significa olhar por todo o planeta. Estamos governando a globalização ou é a globalização que nos governa?”
Amigo de longa data de Luiz Inácio Lula da Silva, recebeu do presidente brasileiro, em dezembro de 2024, a maior honraria concedida pelo País: a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Lula entregou a comenda na chácara de Mujica.
Na ocasião, Mujica disse ao brasileiro: “Não sou um homem de prêmios e medalhas. Sou um homem do povo. Obrigado por termos nos encontrado nessa jornada”.