A atual crise sanitária e econômica pegaram os Estados Unidos com um déficit de quase US$ 25 trilhões. E a perspectiva é que ele cresça ainda mais por conta dos gastos para enfrentar a pandemia da Covid-19.
O Committee for a Responsible Federal Budget, uma espécie de cão de guarda das boas práticas fiscais, estima que o déficit orçamentário dos EUA vai ser superior a US$ 3,8 trilhões em 2020, o que representa 18,7% do PIB. Em 2021, a estimativa é que alcance a marca de US$ 2,1 trilhões (9,7%).
Esses números abriram a discussão na economia americana sobre o quão sustentável é essa trajetória. Para Carl Lane, professor emérito da Universidade Felician, em Nova Jersey, as coisas não são tão graves quanto parecem.
Lane passou sua vida acadêmica estudando o tema. Quase dez anos atrás ele assinou uma análise detalhada sobre o curto espaço de tempo que os Estados Unidos ficou livre de dívidas, um trabalho que foi premiado com o James Soltow Award, um importante prêmio para ensaios econômicos.
O material serviu de base para o primeiro livro do historiador, a obra The Nation Wholly Free, publicada em 2014. O livro explora todos os eventos que antecederam a eleição do presidente Andrew Jackson, em 1829. Foi durante esse mandato que Jackson zerou a dívida americana.
Lane também é o autor do livro Understanding The National Debt: What Every American Needs To Know, que explica de forma didática essa questão.
Nesta entrevista ao NeoFeed, Lane diz que os Estados Unidos deveriam olhar a forma como o País enfrente a Grande Depressão de 1929 e que um dos grandes problemas da economia americana é a concentração de riqueza na mão de poucos bilionários.
“O problema é que a riqueza que estamos criando se acumula nas mãos de uma parcela muito, mas muito pequena de bilionários”, afirma Lane. Acompanhe a entrevista:
Embora o assunto da dívida americana esteja em voga nos dias de hoje, o seu interesse pelo tema vem de longa data. Por que voltou suas pesquisas para este ângulo?
Porque nós sempre tivemos dívidas e, de certa forma, ela conta nossa história. Os Estados Unidos só esteve livre de dívidas por um curto período: pouco mais de dois anos, em 1835.
Pelos seus estudos, saberia dizer se os Estados Unidos conseguiria ser assim, tão rico e poderoso, se não tivesse essa dívida?
Acredito que não: nossa dívida nos enriqueceu. Há quem fale sobre o débito americano com medo ou alarme, mas acho que há uma certa maldade nessas manchetes apocalípticas.
O senhor se refere às notícias como as publicadas no início de abril, chamando atenção para o fato de que a dívida americana havia passado a marca de US$ 24 trilhões?
Sim, são reportagens enganosas, porque uma parte da dívida a gente deve para nós mesmos.
Como assim?
No site do Tesouro americano tem bem explicado, mas pouca gente acessa. Cerca de 26% da nossa dívida é "interna", ou seja, dinheiro que pegamos emprestado do Medicare, que é o nosso sistema de saúde, da aposentadoria, trust funds e afins.
Então você não se preocupa com a dívida americana?
Sinceramente, não. Não estou nem um pouco preocupado.
E essa pandemia não o abala?
O remédio para a recessão é pegar dinheiro emprestado e gastar de forma sábia. Foi o que fizemos na Grande Depressão de 1929. Buscando a retomada econômica, o então presidente Hebert Hoovert, que ficou no poder entre 1929 e 1933, optou por ajudar os bancos, não os indivíduos. Seu sucessor, o presidente democrata Franklin Roosevelt pensava o contrário: que o ideal seria colocar o dinheiro nas mãos das pessoas. Assim, elas sairiam às compras e reativariam a economia. É o que estamos tentando fazer agora.
"O remédio para a recessão é pegar dinheiro emprestado e gastar de forma sábia. Foi o que fizemos na Grande Depressão de 1929"
Qual aspecto da economia americana precisa de correção, ao seu ver?
Eu concordo com o economista francês (Thomas) Piketty: se temos uma economia baseada em consumo vital, estaremos em boa forma. O problema é que a riqueza que estamos criando se acumula nas mãos de uma parcela muito, mas muito pequena de bilionários. Se este cenário se mantiver, teremos problemas, sobretudo porque em dois ou três anos idosos, como eu, representarão um terço da população. É muita gente. E se essa parte da população não puder consumir o que a sociedade produz, teremos um enorme problema. Precisamos migrar para um modelo em que a população tenha receita disponível para o consumo e democratizar a riqueza nos Estados Unidos.
Boa parte da dívida americana pertence aos chineses e a relação entre os países têm vivido alguns atritos.
Contanto que eles estejam investindo na nossa economia e financiando nossa dívida, não vejo motivos para alarme. A China não tem interesse em nos ver afundando, porque eles perderiam muito dinheiro com isso.
Você acredita que dólar pode sofrer depreciação?
Ah, sim, o valor do dólar pode mudar. Se não agirmos para mudar aquele cenário que discutimos antes, de evitar essa concentração de riqueza nas mãos de poucos bilionários, acho que nossa economia pode se tornar, rapidamente, pouco saudável e imoral.