Poucos executivos chegaram ao Olimpo corporativo como o franco-brasileiro Carlos Ghosn. Ele ganhou fama mundial ao unir, há quase 20 anos, a montadora francesa Renault a japonesa Nissan. Com isso, salvou ambas da bancarrota.
Aos 64 anos, ele exercia cargos importantes nas duas empresas e era aclamado por onde passava. Tudo levava a crer que caminharia tranquilamente à aposentadoria e seria lembrado pelos bons serviços prestados às duas montadoras.
Mas, desde novembro de 2018, o mundo de Ghosn virou de ponta cabeça. Ele foi preso em Tóquio, acusado de usar seu cargo em benefício pessoal. Agora, novos detalhes sobre essa intrincada trama surgem em uma reportagem do jornal americano The Wall Street Journal.
Segundo a publicação americana, Ghosn construiu um negócio paralelo como investidor do Vale do Silício com seu filho, usando milhões de dólares que recebeu de um parceiro de negócios da Nissan em Omã, no Oriente Médio.
A operação, conhecida apenas por poucas pessoas, acrescenta novos detalhes cruciais ao que é visto como a acusação criminal mais séria em uma ampla investigação sobre crimes financeiros contra Ghosn.
As autoridades japonesas alegam que Ghosn roubou dinheiro da Nissan por meio de um arranjo na qual a montadora pagava US$ 10 milhões a um distribuidor em Omã. Esse dinheiro depois voltava para Ghosn através de um fundo de uma companhia libanesa.
Novos detalhes a que o jornal americano teve acesso, como documentos de transferência bancárias e e-mails, indicam que os recursos do parceiro de negócio de Omã foi parar em um fundo de investimento do Vale do Silício criado por Ghosn.
Ghosn se envolveu diretamente com esses investimentos, ordenando injeção de recursos milionários nas suas operações do Vale do Silício e aprovando investimentos em startups, como a Grab, um aplicativo de transporte que concorria com a Uber na Ásia.
Fontes próximas à investigação disseram ao The Wall Street Journal que o relacionamento com executivos de Omã mostra que o ex-todo-poderoso executivo da aliança Renault-Nissan misturou de forma imprópria laços familiares e interesses de negócios pessoais com os da companhia que ele liderava.
Com Ghosn no comando, a Nissan fez acordos inapropriados com seus amigos em vários países do Oriente Médio e na Índia, disseram fontes ao The Wall Street Journal.
“Os promotores intensificaram sua campanha para atacar Ghosn e manchar sua reputação", diz uma fonte ligada ao executivo
Pessoas próximas ao executivo, no entanto, negam essa versão. “Os promotores, em colaboração com a Nissan, intensificaram sua campanha para atacar Ghosn e manchar sua reputação através de falsidades e deturpações. Temos a intenção de apresentar nosso caso em um tribunal, não na imprensa. Ghosn é inocente e será inocentado se receber um julgamento justo”, disse um porta-voz de Ghosn.
Fontes ligadas a Ghosn dizem que os investimentos no Vale do Silício eram similares aos do executivo em outras empresas, como o de uma empresa de vinho no Líbano, participações significantes em bancos libaneses e investimentos imobiliários no Oriente Médio. E acrescentam que o executivo cultivou relacionamentos com pessoas no Oriente Médio e Índia que beneficiaram a Nissan nessas regiões.
Do Oriente Médio ao Vale do Silício
As novas informações que deixam ainda mais complicada a situação de Ghosn começam em 2015, quando ele criou, em Delaware, nos Estados Unidos, um veículo de investimento chamado Shogun Investiments, descrito como um fundo para investir em startups no Vale do Silício. Ghosn, segundo fontes que conhecem o assunto, tinha a maioria das ações do fundo, enquanto seu filho Anthony detinha uma pequena participação.
Na mesma época, em Beirute, Fabi Gebran, que era advogado de Ghosn, criou uma companhia chamada de Good Faith Investments. Documentos da empresa mostram que quase todas as ações eram de Divyendu Kumar, um indiano que era diretor da Suhail Bahwan, um distribuidor da Nissan em Muscat, no Omã.
Em 2015, Kumar fez seu primeiro depósito na Good Faith, transferindo 5 milhões de euros de seu banco na Suíça. Ele teria feito ainda quatro transferência adicionais.
Kumar foi a única fonte de recursos para o fundo. No total, ele transferiu 39,5 milhões de euros para a Good Faith (aproximadamente US$ 44, milhões). Pessoas próximas a Ghosn dizem que os recursos veem da fortuna pessoal de Kumar.
Fontes próximas aos investigadores dizem que é improvável que Kumar tenha esses fundos e estão buscando formas de determinar se o dinheiro foi ilegalmente canalizado das contas da Nissan para Ghosn.
Os promotores estão se concentrando em US$ 10 milhões em pagamentos da Nissan para o setor automobilístico de Omã, que foram caracterizados nas contas da montadora como incentivos de vendas e supervisionados por Kumar. Os fundos vieram da "reserva do CEO", um rótulo contábil para pagamentos discricionários feitos pelo executivo por despesas não planejadas.
Os promotores alegam que US$ 5 milhões dos incentivos foram devolvidos a Ghosn por meio de uma empresa que ele controlava, que acreditam ser a Good Faith.
De 2012 a 2018, a Nissan pagou US$ 32 milhões em incentivos aos negócios em Omã. A Renault também fez pagamentos de US$ 11 milhões durante esses anos.
Em abril de 2017, Gebran, que era advogado de Ghosn, escreveu um e-mail para Kumar dizendo que “os valores esperados a serem transferidos” para a Good Faith, naquele ano, eram de 2,85 milhões de euros e US$ 1,25 milhão. Depois de mais trocas de mensagens, Kumar escreveu ao advogado. “Mandei a ordem de transferência hoje.”
A partir de outubro de 2015, Ghosn começou a transferir recursos do Good Faith para o Shogun Investments, a companhia que ele criou em Delaware. Em e-mail naquele mês, ele requisitou US$ 5,5 milhões para ser movido. De 2015 a 2018, US$ 27,2 milhões teriam sido transferidos do Good Faith para o fundo de investimento de Ghosn no Vale do Silício.
O fundo no Vale do Silício era administrado por Anthony Ghosn, filho de Carlos Ghosn
O fundo no Vale do Silício era administrado por Anthony Ghosn, filho de Carlos Ghosn. Ele tinha permissão para fazer investimentos pequenos sem consultar seu pai. Mas para grandes quantias, ele precisava da permissão de Ghosn.
A Shogun investiu em 45 startups, incluindo a Fresco News, uma empresa de mídia digital que já fechou, e a Skurt, um aplicativo de aluguel de carros que foi comprado por um competidor no ano passado.
Fontes próximas a Ghosn afirmam que ele manteve seus investimentos pessoais separados da gestão da aliança Renault-Nissan e que nenhum centavo dos investimentos de Ghosn no Vale do Silício vieram da Nissan. “A Nissan e os promotores estão tentando criar uma conexão que não existe para atacar Carlos Ghosn”, disse uma fonte.
Mr. Cost Killer
Nascido em Porto Velho (RO), educado no Líbano e radicado na França, Ghosn é filho de mãe francesa com pai libanês. Formado em engenharia pela École Polytechnique de Paris, Ghosn teve uma carreira consistente em todas as empresas nas quais atuou.
Passou os primeiros 18 anos na fabricante de pneus Michelin, onde, em 1985, alcançou o posto de presidente da unidade sul-americana, situada no Rio de Janeiro.
Foi nesse cargo que começou a desenvolver seu estilo de especialista em reviravoltas empresariais, ao colocar no azul uma companhia que sofria com a crônica instabilidade da economia mergulhada na hiperinflação.
O sucesso o levou para o comando da subsidiária dos EUA, em 1990. Seis anos depois desembarcou na Renault para o posto de vice-presidente-executivo, atuando nas áreas de pesquisa, engenharia e desenvolvimento de produtos.
Com a compra de parte do controle da japonesa Nissan pela montadora francesa, o brasileiro começou a acumular funções nas duas empresas até assumir o cargo de presidente, em 2000.
Mergulhada em dívidas, a Nissan tinha um enorme rombo operacional e era vista como um caso quase perdido. Ghosn demitiu 21 mil funcionários, fechou cinco fábricas e vendeu unidades da companhia que não davam lucro, ao mesmo tempo em que procedia a uma radical reorganização de processos internos para aumentar a sua eficiência.
Ghosn coleciona uma série de apelidos, alguns elogiosos, como Mr. Fix-it, outros nem tanto, como Head Cutter
Em um ano, a Nissan voltou a dar lucro e o executivo brasileiro acumulou fama e prestígio global, além de diversos apelidos. Alguns deles são elogiosos, como Mr. Fix-it. Outros, como Head Cutter, decorrente da degola promovida na Nissan. Outro epíteto pelo qual ficou conhecido é o Mr. Cost Killer, pela obsessão de cortas custos nas companhias em que administra.
Agora, Ghosn tem pela frente um de seus maiores desafios: provar sua inocência. O processo completo dos promotores de Tóquio contra o Ghosn inclui acusações de reduzir sua compensação em documentos financeiros da Nissan e de usar sua posição executiva para ganhos pessoais.
O executivo deve ir a julgamento em Tóquio no ano que vem e pode ser condenado até 15 anos de cadeia, se for considerado culpado.