Os cortes forçados por parte do Organizador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) de geração de energia de fontes renováveis, como solar e eólica, para garantir a estabilidade e segurança do sistema elétrico, já começam a prejudicar a operação de gigantes do setor de energia que utilizam essas fontes renováveis.
Relatório divulgado na quinta-feira, 2 de outubro, pelo banco BTG Pactual, com números consolidados dos cortes de geração no terceiro trimestre, indica crescimento contínuo desses cortes forçados de geração, conhecidos pelo termo curtailment, que afetam principalmente as usinas solares e eólicas.
No segmento solar, o corte de energia subiu para 34,1% do seu potencial de geração no terceiro trimestre, acima dos 23,8% do trimestre anterior e dos 16,5% do terceiro trimestre do ano passado. O corte de energia eólica ficou em 20,4% no trimestre encerrado em setembro, acima dos 11,9% do trimestre anterior e muito superior aos 11,6% observados no terceiro trimestre de 2024.
Várias empresas de energia que operam usinas solares e eólicas centralizadas, de grande porte, foram citadas no relatório. Pelo menos três foram fortemente penalizadas pelo curtailment no terceiro trimestre nas duas modalidades renováveis.
No segmento de energia solar, por exemplo, a Echoenergia (do Grupo Equatorial) registrou a maior taxa de corte, com 51,4%. Auren (40,2%) e Engie Brasil (34,2%) vêm igualmente enfrentando interrupções significativas de fornecimento de energia. A Alupar também sofreu com o curtailment, com 46% de cortes do potencial de geração solar, mas não aparece na relação das empresas mais afetadas no segmento eólico.
No setor eólico, a Echoenergia registrou 26% de cortes no terceiro trimestre, seguida pela Auren (apenas ativos da AES Brasil, do grupo, com 23,6%) e Engie Brasil (22,6%). Essas três empresas, porém, ficaram atrás de CPFL (33,7%) e Copel (33,7%) no ranking de cortes do segmento eólico, único em que essas duas empresas aparecem.
Com a expansão estimulada por subsídios das usinas eólicas e solares nos últimos anos, essas unidades passaram a sofrer cortes devido, principalmente, à falta de demanda por excesso de geração de energia elétrica em determinados horários do dia.
Os cortes acontecem principalmente durante o dia, quando a incidência solar é maior e a demanda por energia elétrica, menor. O curtailment também aumenta aos finais de semana devido à falta de demanda.
Subsídios na mira
Procuradas pelo NeoFeed, as empresas reconheceram o problema do curtailment.
Liu Aquino, CEO da Echoenergia, do Grupo Equatorial, afirma que os cortes de energia derivam de um problema estrutural, principalmente da sobreoferta no horário do sol. Segundo ele, um dos principais fatores foi o crescimento acelerado da geração distribuída (GD), com subsídios elevados em um período muito curto.
Aquino diz que existem iniciativas da Aneel e do Ministério de Minas e Energia para criar mecanismos de controle e estabelecer um sinal de preço que ajude a conter esse processo, que, além de prejudicial ao sistema, tem encarecido a conta de luz dos consumidores que não possuem GD.
“Os sinais econômicos do setor estão distorcidos diante desse cenário de curtailment da geração centralizada, reflexo de um problema sistêmico que precisa ser solucionado”, afirma o CEO da Echoenergia.
Isso exige, segundo ele, uma solução que traga previsibilidade e distribua a responsabilidade entre todos os agentes que contribuem para a sobreoferta, incluindo térmicas inflexíveis e a própria geração distribuída.
“A solução passa por mudanças na legislação e na regulamentação, trazendo isonomia entre todos os geradores, eliminando subsídios e implementando sinal de preço horário para que a expansão do sistema siga a lógica de oferta e demanda”, diz Aquino.
Sobre os prejuízos causados à Echoenergia, o executivo conta que, no início de 2023, os cortes estavam mais concentrados em usinas eólicas, sobretudo nos ativos instalados em Serra do Mel, no Rio Grande do Norte. Atualmente, os cortes afetam principalmente os projetos solares, com algumas usinas registrando cerca de 45% de restrição de energia, patamar que torna a operação insustentável.
“Esse nível de corte compromete não apenas a performance das unidades, mas também a previsibilidade do negócio, exigindo constante reavaliação do portfólio”, afirma.
Por meio de nota, a Engie Brasil afirma que acompanha de forma proativa os desafios do setor elétrico e adota estratégias para mitigar impactos ao seu negócio. No segundo trimestre de 2025, as usinas eólicas e solares da companhia registraram 14% de frustração de geração, em linha com o índice de 15% observado no Sistema Interligado Nacional (SIN).
“A empresa atua com diversificação do portfólio, otimização de contratos e diálogo setorial para reduzir a exposição a riscos conjunturais”, diz a nota da Engie.
A Auren preferiu não se manifestar.
Apesar dos números robustos de cortes de geração renovável, a maioria das grandes empresas de energia afetadas pelo curtailment dispõe de um amplo portfólio, com diferentes fontes de geração.
Com isso, obtêm ganhos de modulação utilizando outras opções de geração, como usinas hidrelétricas, por exemplo, guardando água durante o dia – quando suas fontes renováveis sofrem cortes de geração – e gerando energia no final da tarde e começo da noite, quando o preço está maior. Com essa receita de modulação, conseguem amenizar boa parte dos prejuízos com o curtailment.
Mas, para empresas que têm um portfólio mais exposto às fontes intermitentes, como solar e eólica, o prejuízo é grande - qualquer percentual que elas deixem de entregar de receita afeta os resultados.
Soluções na mesa
O rápido crescimento do curtailment está gerando uma crise no setor elétrico. De outubro de 2021, quando os dados passaram a ser disponibilizados pelo ONS, até agosto de 2025, os prejuízos causados pelos cortes de geração chegam a R$ 6 bilhões, sendo R$ 3,2 bilhões apenas este ano.
Victor Hugo iOcca, diretor de Energia Elétrica da Abrace - Associação dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres – afirma que existem várias soluções em discussão, em diferentes níveis e prazos.
Ele observa que a Aneel pode finalizar a Consulta Pública 45 (CP45), que está aberta há quatro anos e está na terceira fase. O resultado, esperado para as próximas três semanas, poderia ser uma distribuição mais econômica dos efeitos comerciais dos cortes entre todos os geradores eólicos e solares, em vez de apenas cortes físicos.
“Isso significa que, embora o ONS continue cortando fisicamente um parque específico, o prejuízo comercial seria rateado entre todos os geradores, de forma sistêmica, no Brasil inteiro, ou de forma regional, no Nordeste, por exemplo”, diz iOcca.
Para o prejuízo acumulado com o curtailment, emendas na Medida Provisória 1304 – que está sendo discutida no Congresso Nacional, com propostas de reforma do setor elétrico - poderiam criar um mecanismo de leilão.
Nesse leilão, o prejuízo de R$ 6 bilhões se tornaria um ativo que poderia ser comprado por geradores de hidrelétricas. “Em troca da compra desse 'crédito', os geradores hidráulicos, por exemplo, poderiam estender suas outorgas”, sugere o especialista. “Assim, ao comprar R$ 1 bilhão do ativo, a Usina de Belo Monte poderia ter sua outorga estendida de 2045 para 2049.”
Em sua nota, a Engie também aposta numa solução negociada no Congresso Nacional. “No âmbito regulatório, a Engie Brasil considera que a MP 1304, se endereçada adequadamente, poderá trazer aprimoramentos relevantes para o setor, como abertura do mercado, solução para o curtailment e coerência na redução dos incentivos à micro e minigeração distribuída”, diz a empresa.
Aquino, da Echoenergia, observa que, caso haja a incorporação na MP 1304 das medidas estruturais para a reforma do setor elétrico, o setor terá oportunidade para criar condições que ajudem o ONS a reduzir os impactos do curtailment.
“A medida poderia incluir mecanismos de sinal de preço para horários de pico e sobreoferta, reforçando a isonomia entre todos os geradores e promovendo uma gestão mais eficiente do sistema”, sugere Aquino.
“Também seria relevante incentivar a regulamentação de sistemas de armazenamento, como bancos de bateria, para absorver o excesso de geração solar durante o dia e despachar nos horários de maior demanda, tratados como ativos de transmissão”, conclui o CEO da Echoenergia.