Uruhu Mehinaku, da aldeia Kaupüna, na Terra Indígena do Xingu, em Mato Grosso, começou a talhar bancos em madeira ainda adolescente. Agora, aos 35 anos, ele é o primeiro artista indígena brasileiro a ter uma exposição individual, em uma galeria de arte: a Herança Cultural, em São Paulo.
Nos bastidores do projeto está a dupla Marisa Moreira Salles e Tomas Alvim. Há 20 anos, eles começaram a percorrer o Brasil recolhendo bancos indígenas. Juntaram 1,2 mil, de 85 etnias e batizaram a coleção BEĨ.
Algumas peças já correram o mundo, com exposições em quatro países: Itália, Estados Unidos, Japão e Espanha. E há conversas para que sejam expostas no México e em Portugal em breve.
Moreira Salles e Alvim escolheram Uruhu para a primeira exposição individual por ter sido ele o artista a inspirar a formação da BEĨ. “Ele tem um traço individual muito marcante. Um olhar único, delicado e refinado”, elogia a colecionadora, em conversa com o NeoFeed.
A ser inaugurada no sábado, 23 de março, na Herança Cultural, a exposição traz 19 peças. Os nove bancos médios e grandes são de Uruhu e podem chegar a R$ 45 mil. Com valores a partir de R$ 7 mil, os menores foram produzidos por artistas da mesma etnia Mehinaku.
O trabalho de Uruhu chama a atenção. Com 1,70 metro, do focinho ao rabo, o belíssimo banco com a forma de um tamanduá é um dos destaques da mostra (imagem que abre esta reportagem). “O nível do acabamento de Uruhu é o de um mestre marceneiro. Não dá para entender como ele é capaz de fazer aquilo sem nenhum maquinário”, diz Pablo Casas, dono da Herança Cultural. “Os bancos são verdadeiras obras de arte.”
A percepção de que é preciso alguém capacitado para comercializar as obras dos indígenas foi o que motivou os colecionadores a encontrar uma forma disso acontecer.
“Foi ficando claro para a gente, ao longo do tempo, que se não houver mercado, a tradição vai se perder”, afirma Alvim. “Estamos falando de acessar um mercado mais qualificado, mais sofisticado, que condiz com a obra deles.”
Os primeiros designers
Na Herança Cultural, as peças serão vendidas da mesma forma e com o mesmo cuidado dispensado pela galeria a designers como Zanine Caldas, Joaquim Tenreiro, Sergio Rodrigues e Jorge Zalszupin.
“Eu e Tomas defendemos a tese de que os indígenas são nossos primeiros designers. Mas eu iria mais longe”, diz Marisa. “Eles são nossos primeiros artistas e são artistas de verdade”.
Como não fala português, Uruhu respondeu à entrevista para o NeoFeed com a ajuda de um tradutor. Para ele, ser representado comercialmente pela primeira vez é algo que “aumenta a visibilidade e o reconhecimento de seu trabalho artístico como indígena” e pode ajudá-lo a captar recursos e trazer novas oportunidades de venda, exposição e parcerias.
No passado, como lembra, o artista demorava até 20 dias para concluir um banco. Hoje, graças a novas ferramentas, sempre manuais, o prazo diminuiu pela metade. Em sua opinião, as três melhores madeiras para fazer bancos são piranheira, moreira e ipê.
No dia da abertura da exposição, ele participa de uma conversa com Marisa, Tomas e a designer Claudia Moreira Salles, na Herança Cultural, às 11h30.
O trabalho de Uruhu tem também a admiração do artista Sergio Fingermann. Sua originalidade é da “família de um Brancusi”, diz, referindo-se ao escultor romeno, Constantin Brancusi (1876-1957), um dos grandes nomes da vanguarda moderna.
“Uruhu nos encanta com formas sintéticas que guardam a associação com bichos da floresta, mas sob uma nova visão, econômica nos detalhes e cheias de um imaginário que cria outro mundo e nos convida a habitá-lo. É um mundo caracterizado pela harmonia, beleza e magia”, define Fingermann.
A aceitação comercial de Uruhu ainda é uma incógnita para o galerista Pablo Casas. “Não há histórico de galerias vendendo esse tipo de peça. Sei que elas têm uma grande aceitação no mundo da decoração de alto luxo”, diz ele. “Quando você lança uma história dessas, não pode ter pressa para que as coisas aconteçam. Os bancos podem ter muita força fora do Brasil. Vamos ver o que acontece.”
"Objetos resistentes"
Enquanto acompanhavam a itinerância da coleção BEĨ, Moreira Salles e Alvim dirigiram o documentário Xingu-Tokyo: Conexão Ancestral, a ser exibido, na segunda-feira, 18 de março, no Espaço Itaú de Cinema, em São Paulo.
O filme propõe uma reflexão sobre a arte indígena, da floresta ao museu, a partir da exposição Bancos dos Povos Indígenas Brasileiros: Imaginação Humana e Fauna Selvagem, realizada no Museu Metropolitano de Arte Teien, em Tóquio, entre junho e setembro de 2018.
Para muitas etnias, como a Mehinaku, um banco não é apenas um banco. Cercado por simbolismos, vai além de seu assento. Em geral, as peças são produzidas apenas pelos homens, com os ensinamentos sobre a arte de talhar, que passa de geração em geração.
Esculpidos em madeira, sem juntas ou emendas, os bancos assumem a forma de animais ou seres míticos. Servem de demarcadores sociais. Alguns são de uso exclusivo dos homens. Outros, das mulheres. Os dos líderes da aldeia são de um jeito. E os dos pajés se prestam à transcendência espiritual.
Como escreve Cristiana Barreto, do Museu de Arqueologia e Etnologia, da Universidade de São Paulo, no artigo Bancos indígenas: entre arte e artefato, publicado no site da BEĨ: “Os bancos indígenas fazem parte do rol dos objetos ditos ‘resistentes’, isto é aqueles que não foram substituídos pelos produtos industrializados introduzidos aos indígenas desde os primeiros contanto com o branco”.