O que o banco Mirabaud tem a ver com a confeitaria Toraya, dos tradicionais docinhos wagashi? E qual é a relação entre a editora musical Henry Lemoine e a joalheria Mellerio? Ou da fabricante de tecidos Vitale Barberis Canonico com o armador Augustea?

Elas… e também Zaiso Lumber, Möller, Amarelli, Köchert, Pollet, Hottinger, Revol, Pinto Basto, Gekkeikan, Lobmeyr, De Kupyer, Beretta… grandes, médias e pequenas, dedicadas às mais diversas atividades, são todas empresas "enoqueanas".

Sexto patriarca depois de Adão, pai de Matusalém e bisavô de Noé, Enoque tinha 365 anos, quando “não apareceu mais, porquanto Deus para si o tomou”, lê-se no Antigo Testamento. Na mitologia bíblica, Enoque não morreu: ele foi elevado aos céus.

Por sua perenidade, o personagem serviu de inspiração para a associação Les Hénokiens — um seletíssimo clube cujos afiliados são negócios familiares com, no mínimo, 200 anos de história.

Exigência difícil de cumprir, mas não impossível. As regras, porém, são ainda mais rigorosas.

Condição número 2: a companhia deve ser administrada por um descendente do fundador. Três: mais de 50% do patrimônio da empresa deve estar nas mãos da família original.

Quatro: saúde financeira equilibrada. Cinco: governança alinhada aos preceitos da sustentabilidade socioambiental.

E, por fim, talvez, a premissa mais complicada: para fazer parte do grupo, é preciso ser convidado.

Ah... deve-se ainda pagar uma taxa proporcional ao faturamento do negócio. E, é de bom tom, confirmar presença nas reuniões anuais do clube.

Não à toa, apenas 56 organizações compõem hoje a comunidade — 15 francesas, 14 italianas, dez japonesas, cinco suíças, quatro alemãs, duas holandesas, duas belgas, duas austríacas, uma inglesa e uma portuguesa.

Desde 1981, quando a associação foi lançada, o número de empresas vem se alterando. É natural. Conforme envelhecem, novos sócios chegam. E, alguns saem. Quando aconteceu, na maioria das vezes, foram desfiliados porque os descendentes da família fundadora renunciaram ao negócio.

O próprio idealizador da Les Hénokiens, o francês Gérard Gotlin teve de sair em 2006. Na ocasião, a marca de bebidas de sua família, a Marie Brizard & Roger, foi vendida para o grupo Belvédère, por € 410 milhões. De 1755, a empresa criou o primeiro licor de anis do mundo.

Tradições preservadas

Ao atravessar o tempo, sobrevivendo a guerras, insurreições, crises financeiras, catástrofes naturais, epidemias e conflitos internos, as enoqueanas transformaram culturas, ajudaram a remodelar a política e a revigorar a economia global.

Na mesma família há 46 gerações, a hospedaria Hōshi é reveladora da riqueza imbuída nos negócios familiares bicentenários. A mais antiga entre as 56 companhias da Les Hénokiens, foi fundada no século 8, na província de Ishikawa, no litoral do Mar do Japão.

Nos últimos 1.307 anos, o hotel, claro, evoluiu. Com capacidade para acomodar 450 pessoas, os 100 quartos oferecem televisão de tela plana e Wi-Fi

As tradições, no entanto, estão preservadas. Até hoje, ao chegar, o visitante recebe um yukata, o quimono de algodão usados pelos antigos nobres no onsen, o banho em águas termais. Como a cerimônia do chá, o jantar se mantém fiel à vocação da região, com pratos à base de mariscos frescos.

Em 717, reza lenda, o monge budista Taicho Daishi subiu o monte Hakusan para meditar. Certa noite, a divindade guardiã do lugar teria lhe aparecido em sonho: no sopé da montanha, na vila Awazu, haveria uma fonte subterrânea de água quente com poderes curativos: "Desenterre a fonte termal e ela os servirá para sempre”. Profecia confirmada, Taicho determinou ao discípulo Garyo Hōshi que construísse um spa no local e administrasse a propriedade. Assim nasceu a pousada Hōshi, (Crédito: Reprodução ho-shi.co .jp)

A confeitaria Toraya foi fundada em Kyoto, no Japão, por volta de 1500, por Enchu Kurokawa. Especializada nos tradicionais bolinhos wagashi, a casa era a fornecedora oficial da corte imperial , durante o reinado do imperador Goyosei (1586-1611). Em 1976, a empresa já equiparava os salários de mulheres e homens. Hoje, sob o comando da 17ª geração, a marca conta com 80 lojas no Japão e uma casa de chá em Paris (Crédito: Reprodução global.toraya-group.co.jp)

O primeiro negócio fechado pela italiana Vitale Barberis Canonico data de 1663 — um corte de lã cinza vendido para o duque de Savoia, uma das mais antigas famílias de nobres da Europa. Sob o comando da nona geração, a empresa é frequentemente premiada por suas iniciativas de sustentabilidade. E, para se manter em sintonia com os novos consumidores, costuma fazer parcerias com marcas jovens, como a milanesa Driade., de móveis e objetos para casa. Dessa collab nasceu, por exemplo, a poltrona da imagem (Crédito: Reprodução driade.com)

Fundada há 256 anos, em Drôme, no sudeste francês, pelo casal de artesãos Pierre e Magdeleine Revol, as peças de cerâmica da Revol continuam sendo feitas à mão — o que garante a transferência de conhecimento entre gerações e fideliza os funcionários. Mas isso não impede a empresa de inovar., como a criação recente de uma pasta que pode ser submetida a várias fontes de calor (Crédito: Reprodução revol1768.com)

Certo dia em 1780, o vendedor ambulante Jean-Baptiste Mellerio, de 14 anos, expunha suas mercadorias na frente do palácio de Versailles, quando uma carruagem para e a dama de companhia de Maria Antonieta desce e compra o bracelete decorado com sete camafeus, cada um deles com a efígie de um imperador romano, circundado por rubis. Assim, a joalheria Mellerio conquistou os nobres europeus e hoje é uma das mais sofisticadas grifes da alta joalheria francesa. (Crédito: Reprodução mellerio.fr)

Fundada em 1755, em Bordeaux, na França, pela enfermeira Marie Brizard e seu sobrinho Jean-Baptiste Roger, a empresa criou o primeiro licor de anis do mundo. Ela tinha 40 anos quando cuidou de um marinheiro ferido e ele, em agradecimento, lhe presentou com a “receita secreta” de uma bebida à base de “especiarias muito especiais”. Apreciado pelo rei Luís XV (1710-1774), a partir de 1763, o Anisette se tornou obrigatório nas festas em Versailles, ganhou o mundo e rendeu € 410 milhões aos herdeiros de Marie, quando o negócio foi vendido há quase vinte anos (Crédito: Reprodução mariebrizard.com)

Além de contar histórias instigantes, as enoqueanas são uma lição para as companhias familiares de todo o mundo sobre como ter sucesso em tempos de transformação acelerada dos negócios (conheça algumas delas nas fotos acima).

No Brasil, conforme dados do IBGE, 90% das empresas têm perfil familiar. Delas, porém, apenas três em cada dez chegam à terceira geração, revela estudo do Banco Mundial. E, somente 15% sobrevivem à sucessão de três gerações.

O cenário americano é bem parecido. Cerca de 70% fecham depois da morte do fundador e não mais do que 13% ultrapassam o 60º aniversário.

“A associação Les Hénokiens exemplifica os fatores que contribuem para a longevidade e resiliência das empresas familiares”, diz Andrea Maia, vice-presidente de mediação do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (Cbma), em entrevista ao NeoFeed. “Elas conseguem equilibrar a herança cultural com a inovação, garantindo que os valores fundamentais sejam preservados ao longo das gerações.”

Além disso, as enoqueanas souberam construir e manter uma forte identidade de marca ao longo tempo. “Empresas longevas são conhecidas por sua qualidade, confiabilidade e capacidade de entregar valor consistentemente, o que cria uma base de clientes leal”, afirma a executiva.

Mas, sobretudo, essas companhias têm “planos de sucessão claros e bem definidos, o que garante a continuidade e transferência de conhecimento entre gerações”, como define Andrea.

A Les Hénokiens oferece um extenso programa de formação para os futuros líderes, com base nas teorias de William O’Hara (1932-2018), um dos grandes nomes nos estudos sobre empresas familiares.

Valor X hereditariedade

Na olaria Revol, fabricante de utensílios de cozinha e mesa de porcelana, fundada há 256 anos, em Drôme, no sudeste da França, apenas a hereditariedade não garante um lugar na empresa — € 18 milhões em vendas anuais e clientes em 84 países.

“Existem duas condições”, diz Oliver Passot, CEO da companhia, à revista Demeure Historique. “Demonstrar competência nos estudos e trabalhar em outro lugar antes, para provar seu valor.”

No comando do negócio desde 2007, quando assumiu o posto do pai, o empresário pertence à nona geração de descendentes do casal de artesãos Pierre e Magdeleine Revol. Passot estudou administração nos Estados Unidos, trabalhou nas indústrias têxtil e de transportes, antes de ir para a Revol.

Apesar da ancestralidade da empresa, não há nenhuma pressão sobre a nova geração em relação aos negócios da família. Duas irmãs de Passot nunca se interessaram pelo negócio de porcelana.

Abrir um canal de conversa fluido e sincero sobre quem quer assumir a empresa, aliás, é imprescindível, defende a VP de mediação, da Cbma. “Parece obvio, mas já estive em mais de uma mediação em que o filho me confessou, em sessão privada, que não queria ser o sucessor do pai, mas não sabia como comunicar isso à família, sem gerar frustração ou decepção”, lembra Andrea.

O valor da sustentabilidade

Se as enoqueanas tivessem uma única filosofia, seria: atualizar as tradições. Nesse movimento, muitos negócios de família, parecem entender mais profundamente o valor da visão de longo prazo — o significado de legado e propósito.

"As empresas familiares têm vivido e prosperado com base em princípios básicos de sustentabilidade ao longo das gerações", escreve Tom McGiness, sócio-líder global de empresas familiares e private enterprise da consultoria KPMG, no Reino Unido, no relatório Uma estrada bem percorrida, do 2023 Global family business report.

Fundada nos anos 1600, em Kyoto, no Japão, a confeitaria Toraya, em 1976, já equiparava os salários de mulheres e homens e concedia licenças maternidade e paternidade mais longas do que as registradas por outras companhias do setor.

A italiana Vitale Barberis Canonico (VBC), fabricante de tecidos finos, de Patrivero, no coração do Piemonte, é outra bicentenária alinhada aos preceitos da sustentabilidade socioambiental.

Famosa por sua lã merino saxônica, tida como a melhor do mundo e sob o comando de três primos, da 13ª geração da família, a VBC já recebeu diversos prêmios por suas práticas limpas.

A fábrica, onde trabalham 480 pessoas, é movida 100% a energia renovável e a companhia compensa suas emissões de gases de efeito estufa. Além disso, adota um programa de rastreabilidade de toda a cadeia e incentiva os criadores de ovelhas a buscarem certificações de bem-estar animal.

“Ser sustentável significa olhar para o passado para construir o futuro”, costuma dizer o CEO Alessandro Barberis Canonico.

Fornecedora de lã para grifes de luxo, como Ermenegildo Zegna, a VBC se renova também em collabs com marcas jovens, sem gênero e de tendência athleisure, como a T_Coat, VitoVI e Quantico.

Na última Milan Design Week 2024, a empresa apresentou a coleção Unveiling Threads, em parceria com a Driade, fábrica italiana de móveis e objetos para casa. As lãs dos Barberis Canonico estofaram sofás e poltronas.

Presente em uma centena de países, a VBC fechou 2023 com € 166 milhões, em vendas — um crescimento de 13% em relação a 2022.

A resiliência do longo prazo

Princípios sólidos, visão de longo prazo e práticas socioambientais bem consolidadas propiciam às companhias de controle familiar um desempenho financeiro melhor, mostram os analistas do Credit Suisse Research Institute.

Seu último relatório, intitulado The Family 100: family values and value creation, de 2023, os analistas mostram que os negócios familiares geraram um retorno anual ajustado de 300 pontos-base a mais do que os de controle pulverizado. Para a pesquisa, foram consultadas mil empresas de capital aberto, no mundo todo.

Foi o que possibilitou a elas, por exemplo, atravessar a pandemia do novo coronavírus com relativa tranquilidade — inclusive, segundo o banco, demitindo menos.