Respeitado por sempre questionar o papel das instituições, sobretudo da Igreja Católica, o italiano Marco Bellocchio é sinônimo de cinema de reflexão e contestação. O Segredo do Papa, recém-lançado no Brasil, reforça a importância de sua filmografia, ao resgatar o caso verídico do menino judeu, arrancado de sua família, para ser criado como católico sob os cuidados do papa Pio IX.
“É um filme sobre a intolerância e sobre os dogmas que devem ser respeitados cegamente, como se a própria religião dependesse disso. Foi isso que levou à violência extrema contra Edgardo Mortara (1851-1940)”, contou Bellocchio, referindo-se ao garoto de Bolonha, que teve a guarda retirada dos pais família, aos seis anos, gerando uma longa disputa judicial, de repercussão internacional.
O Caso Mortara, como ficou conhecido, foi parar nas páginas dos jornais, incluindo veículos americanos, depois que a criança foi tirada de sua casa, para o desespero dos pais, Momolo e Marianna Mortara, em 1858. A justificativa dada pelas autoridades papais que o arrastaram, aos prantos, foi a descoberta de que Edgardo havia sido levado à igreja, para ser batizado secretamente.
Quem tomou a decisão foi a empregada católica da casa, quando Edgardo, ainda bebê, adoeceu gravemente. Ela temia que o menino morresse e fosse para o inferno. E segundo a lei papal da época, por causa do batismo, o garoto era cristão. E, como tal, não poderia ser educado por pais judeus.
Ainda que Momolo e Marianna tenham tentado recuperar a guarda do filho, por 12 anos, o papa nunca aceitou devolver o menino — a não ser que a família toda se convertesse ao catolicismo, o que não aconteceu. E mesmo com a opinião pública a favor dos pais, gerando publicidade negativa para a Igreja, o pontífice se manteve inabalável.
“Só tenho que responder a Deus”, diz o religioso, interpretado pelo ator Paolo Pierobon. “Edgardo era um símbolo do poder espiritual e do poder do papa. A exemplo dos ditadores, como Hitler e outros, ele não queria perder o seu poder, o que aconteceria, se ele devolvesse a criança aos pais”, afirmou Bellocchio, de 84 anos, que concorreu à Palma de Ouro de Cannes com o trabalho.
“Eu não fiz um filme contra o papa, só para pintá-lo como um vilão, ou com o intuito de condenar a Igreja Católica. Mas a intenção aqui também é salvá-los”, disse Bellocchio, um dos grandes cineastas italianos ainda em atividade. Principalmente após a morte, em 2018, de Bernardo Bertolucci, que era mais conhecido no cenário internacional.
“Por ser católico, ainda que não praticante, quis fazer parte da história de Edgardo. Ela me tocou profundamente assim que li o livro (O Caso Mortara, de Daniele Scalise), embora eu nunca tenha sido sequestrado pela Igreja”, comentou o cineasta, em encontro com jornalistas em Cannes, do qual o NeoFeed participou.
O Segredo do Papa cobre a vida de Edgardo até a fase adulta, quando ele não só se mantém católico como se torna padre.
Ao longo da história, Bellocchio deixa clara a lavagem cerebral a que ele foi submetido na infância e adolescência — o que explicaria, em parte, sua defesa, mais tarde, da religião daqueles que o sequestraram.
“Vale lembrar também que Edgardo nunca foi maltratado ou punido. Pelo contrário, o papa sempre o protegeu e o tratou com benevolência”, destacou o cineasta.
Quando decidiu levar o Caso Mortara às telas, Bellocchio tomou conhecimento de que Steven Spielberg também desenvolvia um projeto de filme sobre Edgardo, baseado em outro livro.
“Spielberg já tinha procurado locações e atores. Mas tudo parou porque, aparentemente, ele não encontrou o menino certo para encarnar Edgardo”, contou o diretor, que não teve o mesmo problema. A performance do ator mirim Enea Sala é bastante comovente, dando uma dimensão irremediavelmente humana à trama.
“Mas acho que Spielberg teve também outros motivos para abandonar o projeto. Esta história só poderia ser contada em italiano, com o uso de dialetos regionais. Com os atores falando inglês, em uma produção americana, o impacto não teria sido o mesmo”, defendeu Bellocchio, provavelmente satisfeito por seu filme não ter um concorrente hollywoodiano.