Brasília – A tragédia climática que, três meses atrás, arrasou o Rio Grande do Sul, deixou um rastro de destruição no setor elétrico que ainda não foi apagado. Para muitas instalações de geração, transmissão e distribuição de energia, o momento ainda é de limpeza, reconstrução e negociação de dívidas, após estruturas terem sido varridas pela lama em todo o Estado.
O NeoFeed levantou dados oficiais sobre a atual conjuntura do setor elétrico gaúcho e as principais frentes de mobilização para trazer normalidade à prestação de serviço. Pelo menos 15 usinas de geração de energia no Estado seguem fora de operação, devido às inundações e entulho que arrebentaram ou danificaram completamente suas estruturas.
Para garantir o abastecimento, redes de transmissão foram retomadas de forma emergencial e a geração foi redirecionada em determinadas regiões. Hoje, o abastecimento está assegurado no Estado, mas sob condições emergenciais em muitos municípios
Trata-se de uma prejuízo bilionário. Em maio deste ano, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, chegou a estimar que os prejuízos causados pela tragédia climática no setor elétrico superam R$ 1 bilhão. Mais de 2,3 milhões de pessoas foram diretamente afetadas. Até o momento, 182 pessoas tiveram a morte confirmada e 29 ainda estão desaparecidas.
O Rio Grande do Sul possui um total de 426 empreendimentos de geração de energia, sendo 140 usinas térmicas, 68 fotovoltaicas, 81 eólicas e 137 hidrelétricas. Desse parque total, mais de 10%, ou 44 usinas, foram diretamente impactadas, o que mexeu com o nível de segurança das barragens e levou a paralisações.
Ao todo, 29 plantas impactadas já tiveram suas operações normalizadas nas últimas semanas, mas 15 estruturas seguem desligadas, situação que inclui empreendimentos como a hidrelétrica de Jacuí, de 180 megawatts, e de Monte Claro, de 130 megawatts.
Na lista das empresas que ainda tentam reerguer suas usinas está a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). A hidrelétrica Toca, localizada no rio Santa Cruz, em São Francisco de Paula, um dos municípios mais chuvosos do Estado. A usina foi engolida pela lama em 2 de maio, paralisando todas as suas turbinas, e hoje a previsão de retorno, segundo a própria companhia, é apenas fevereiro de 2025.
Em documento encaminhado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a CEEE tenta escapar de possíveis cobranças atreladas ao seu contrato de concessão, devido à paralisação da usina, sob alegação de que a unidade “foi atingida por evento hidrológico anormal e, repise-se, sem que tivesse qualquer responsabilidade sua pelos danos causados”.
“A catástrofe que culminou na decretação de calamidade pública (em todo o Estado) foi decorrente de um nível anormal do volume de chuvas, que fez com que as bacias hidrográficas da região transbordassem e causassem danos de toda ordem”, declarou a companhia.
Na prática, a CEEE tenta evitar que uma decisão administrativa – a decretação de suspensão das atividades da usina pela Aneel –, corte o benefício que prevê o compartilhamento dos custos financeiros dessa inatividade entre todos os agentes do setor elétrico.
“A referida usina foi vítima de um evento hidrológico extraordinário, caracterizado como calamidade pública, que deve ser incluído no rol de eventos que compõem o risco hidrológico objeto de compensação pelo MRE (Mecanismo de Realocação de Energia).”
A área técnica da Aneel avalia que a suspensão da operação comercial deve ser efetivada, acrescentado que a medida “não possui viés punitivo”.
A situação é a mesma no caso da hidrelétrica Soledade, no Município de Fontoura Xavier, controlada pela Cooperativa de Geração e Desenvolvimento Fontoura Xavier (Cerfox). A previsão de retorno é apenas em maio do ano que vem.
“Devido às fortes chuvas que tem atingido o estado do Rio Grande do Sul desde o mês de abril, o município de Fontoura Xavier onde se localiza a CGH (central de geração hidrelétrica) Soledade foi fortemente atingido, tendo um montante de chuvas acumulados em 15 dias equivalente a 50% do volume total previsto para um ano inteiro”, afirmou a empresa.
Como consequência, justificou a companhia, a usina “foi afetada, tendo danos em sua casa de máquinas com queda e comprometimento completo da estrutura civil da casa de máquinas, do sistema de automação e comunicação, do sistema de medição de fronteira e de elevação de tensão e proteção do ponto de conexão com a distribuidora local. As estradas de acessos foram totalmente obstruídas devido a quedas de barreiras e pontes.”
No pequeno município de Putinga, a Cooperativa Regional de Desenvolvimento Teutônia (Certel) trabalha para retomar as operações da usina Salto Forqueta, com remoção de milhares de toneladas de entulho e lama.
“Todos os esforços estão concentrados no restabelecimento da geração de energia da PCH Salto Forqueta, possibilitando agilidade na retomada da operação da usina. Apesar da calamidade pública, até o momento a recuperação está sendo custeada com recursos próprios da cooperativa”, afirma a companhia.
Atrasos de obras e estrangulamento financeiro também são situações recorrentes entre empresas que atuam com transmissão e distribuição. O Grupo MEZ Energia enviou um “pleito de socorro emergencial” à agência reguladora, para receber os pagamentos já previstos atrelados a projetos que controla na região e que foram completamente impactados pela tragédia climática.
“A MEZ 5 tem enfrentado significativas dificuldades e impactos pela situação de calamidade pública”, declarou a empresa à Aneel, em 19 de julho, acrescentando que, “apesar da situação extremamente adversa e crítica na região”, tem encarado extrema dificuldade para honrar seus compromissos.
“A MEZ 5 reitera a emergência e a necessidade de apoio emergencial da Aneel para garantir a continuidade de suas operações, mitigando os impactos financeiros decorrentes da calamidade pública no Estado do Rio Grande do Sul.”
A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que faz a liquidação financeira do setor elétrico, fez um balanço da inadimplência registrada no setor entre os dias 1º e 31 de maio e concluiu que, só neste intervalo, 78 empresas ficaram inadimplentes em 49 municípios. O rombo local somou R$ 270,046 milhões naquele mês.
No Rio Grande do Sul atuam 20 distribuidoras de energia, que atendem cerca de 4,5 milhões de unidades consumidoras, nos seus 497 municípios. A RGE, companhia da CPFL Energia, presta serviços de distribuição em 340 cidades, dos quais 245 foram diretamente impactadas. Muitas regiões chegaram a ficar semanas sem abastecimento. Para entregar energia, foram feitas transferências de cargas em situações em que havia pontos de conexão de rede.
Essas manobras para garantir o abastecimento acabaram por superar os montantes de energia previstos para serem trafegados nas redes, conforme os contratos de concessão da RGE, que agora tentam escapar de uma penalidade milionária que pode ser imposta pela Aneel.
“A RGE se encontra à iminência de ser vitimada com prejuízo mínimo da ordem de R$ 23,61 milhões”, afirma a empresa, “decorrente dos esforços da distribuidora para o restabelecimento e/ou manutenção de fornecimento de energia após os eventos climáticos severos verificados no estado do Rio Grande do Sul”. O caso está em análise pela agência.
Questionada pelo NeoFeed sobre o cenário atual do abastecimento no estado e os principais focos de atenção, a Aneel declarou que, com relação aos serviços de distribuição, todas as unidades consumidoras já estão atendidas.
Quanto à geração, a agência afirmou que as usinas Jacuí e Monte Claro ainda permanecem indisponíveis, além de algumas outras usinas de pequeno porte. “Salienta-se que tais indisponibilidades não comprometem o atendimento da região, realizada pelo Sistema Interligado. O foco atual é acompanhar a recuperação das condições operacionais das usinas, bem como as ações de acompanhamento de segurança das barragens da região”, informou a Aneel.
A respeito dos serviços de transmissão, a Aneel declarou que, desde que as condições climáticas no Rio Grande do Sul começaram a melhorar, as instalações afetadas passaram a ser gradativamente restabelecidas. “Foram restabelecidas prioritariamente aquelas instalações de transmissão mais relevantes para a segurança operacional do sistema”, informou, acrescentando que faltam duas redes – em Nova Santa Rita e Guaíba – para serem normalizadas.
Sobre as principais medidas já tomadas para flexibilizar o impacto econômico sobre os consumidores e empresas, a agência reguladora mencionou quatro ações conduzidas por seu Comitê de Crise. A primeira trata da suspensão, por três meses, da obrigação das distribuidoras do recolhimento de quotas mensais de encargos, sem a aplicação de multa ou juros relacionada ao período de suspensão.
A segunda medida alterou, de forma excepcional, os procedimentos para comprovação de regularidade setorial e fiscal das empresas, prorrogando, por 90 dias, a validade dos certificados de adimplemento. Uma terceira medida busca reduzir o impacto tarifário de serviços aos consumidores gaúchos, enquanto uma quarta ação destina recursos de bônus de Itaipu para auxiliar os consumidores.
A reportagem questionou o Ministério de Minas e Energia sobre o assunto, mas não obteve retorno até o fechamento deste texto.