O que Veneza tem a ver com o Pantanal? Ou o que aproxima Tuvalu da Antártida? E os Alpes da Grande Barreira de Corais? Sim, são destinos de férias. O.K., mas o que os difere dos demais “cartões postais” espalhados mundo afora?
Com o caos climático, esses lugares... e as Maldivas, o Kilimanjaro, a Amazônia, os ursos polares, os rinocerontes, os botos cor-de-rosa... entre outras tantas atrações estão ameaçadas sofrer danos irreversíveis; algumas podem até desaparecer.
E, frente à iminência da tragédia, é cada vez maior o número de viajantes ávidos por conhecê-las. Bem vindos, ao turismo de última chance — também chamado de turismo de extinção, de desastre ou até "viagem do Juízo Final", como preferirem.
Ainda que os cientistas alertem para os riscos do aquecimento global desde, pelo menos, a década de 1970, o vaivém dos turistas climáticos pelo mundo é recente — o termo “last chance tourism” (LCT) apareceu pela primeira vez em 2008, na mídia; e, dois anos mais tarde, na literatura acadêmica.
À notícia de um pico nevado menos branco, uma floresta em chamas ou uma tartaruga com um canudo enfiado na narina, lá vão eles, “ver antes que acabe”. Se o aquecimento global torna as viagens de última chance mais populares, os passeios a regiões já bastante fragilizadas ficam cada vez mais perigosos.
No domingo, 22 de setembro, um grupo de 20 turistas passara o dia na cachoeira Quebra dos Deuses, em Sobradinho, no Distrito Federal, quando ficou encurralado pelo fogo dos incêndios no Parque Nacional de Brasília. Os banhistas só conseguiram sair do lugar com a ajuda do Corpo de Bombeiros, depois de horas de pânico.
Menos de um mês antes, em 25 de agosto, um americano morreu após o desabamento de uma caverna na geleira Breiðamerkurjökull, no sudeste da Islândia. Também dos Estados Unidos, a namorada dele ficou ferida no acidente.
Formadas a partir de água derretida, as grutas islandesas são famosas por suas paredes azuis brilhantes.
Perfeitas para fotos nas redes sociais, atraem anualmente cerca de meio milhão de turistas. Mas, com o aumento das temperaturas do planeta, essas formações perdem estabilidade e os riscos de colapso aumentam.
Fenômeno semelhante acontece na Antártida. Até hoje, a “prainha” de Neko Harbour é um dos pontos turísticos mais visitados. Mas, antes, os turistas podiam ficar por ali, caminhando tranquilamente entre os pinguins.
Agora, no momento do desembarque, eles são orientados a se afastar imediatamente da beira d’água e subir para o topo da montanha. Mais frequentes, os desprendimentos de blocos de gelo, do glaciar em frente a Neko Harbour, causam ondas gigantescas, capazes de virar os botes.
Em 2023, o gelo na Antártida chegou a seu nível mais baixo desde 1979. E, enquanto, as geleiras diminuem, o turismo aumenta. Para verão 2023/2024, entre outubro e abril, eram esperados 100 mil visitantes no “continente gelado” — 40% a mais do que a temporada anterior.
Quem? Eu?
Os viajantes de extinção estão conscientes dos estragos provocados pela crise climática e reconhecem a importância da preservação, indicam pesquisas recentes.
Eles, no entanto, não associam sua presença em ecossistemas ameaçados ao recrudescimento da degradação. É o paradoxo do turismo de última chance.
No estudo Antarctic Shipborne Tourism: Carbon Emission and Mitigation Path, cientistas chineses mostram que um turista em viagem de navio para a Antártida lança de 3,2 a 4,1 toneladas de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. A título de comparação, citam: um habitante das economias avançadas da Europa emite, em média, 6 toneladas de CO², por ano.
“Os turistas, que correm para visitar um local específico 'antes que desapareça', estão eles mesmos contribuindo para sua destruição”, escrevem as pesquisadoras australianas Annah Piggott-McKellar e Karen McNamara, da Universidade de Queensland, em artigo no Journal of Sustainable of Tourism.
Ao estudar a “peregrinação” a Grande Barreira de Corais, elas constataram: 70% dos visitantes voam até a Austrália motivados pela urgência da última oportunidade. Mas poucos se reconhecem parte do problema.
Com 2,4 mil quilômetros de extensão, localizada ao largo da costa norte australiana, a Grande Barreira de Corais é o maior organismo vivo do mundo — visível até do espaço. Com 600 tipos de corais diferentes, serve de abrigo para 25% de toda a vida marinha.
Mas essa exuberância está sob grave ameaça, à medida em que os oceanos aquecem. Em agosto passado, um grupo de cientistas australianos soou o alarme: na última década, as temperaturas dentro da Grande Barreira e ao redor dela atingiram os níveis mais altos em 400 anos.
O ataque do urso polar
Um outro estudo, esse sobre a evolução das motivações dos visitantes à cidade canadense de Churchill, conhecida como a “capital mundial dos ursos polares”, ao longo de uma década, chegou a resultados parecidos. “Embora a maioria dos turistas se preocupe com as mudanças climáticas (...) os padrões de consumo não mudaram”, lê-se no relatório Last chance tourism: a decade review of a case study on Churchill, Manitoba’s polar bear viewing industry.
O clima excepcionalmente quente vem causando atrasos no congelamento da Baía Hudson, na costa do oceano Ártico. É para que os ursos vão todos os anos para procriar e caçar focas. Segundo um levantamento de 2016, desde 1979, a cada década, nove dias são acrescidos ao período sem gelo.
Com isso, os ursos passam mais tempo em terra, o que pode comprometer a capacidade reprodutiva dos animais — ninhadas menores e filhotes com dificuldades para chegar à idade adulta. Tem mais.
Na ausência de gelo, os bichos invadem as vilas da região em busca de comida. E a convivência com os seres humanos nem sempre é tranquila. No verão de 2023, um turista de 70 anos e seu casal de filhos foram atacados por um urso. Apesar de gravemente feridos, os três sobreviveram.
E o nível do mar sobe
Conforme as geleiras marítimas derretem, o nível dos oceanos sobe, atraindo viajantes para áreas ameaçadas sumir sob as águas. Mantido o ritmo atual de degradação, Veneza, na Itália, corre o risco de submergir por completo por volta de 2100, alertam especialistas da Unesco.
Muitas ilhas do Pacífico podem ter o mesmo destino. Lá, a altitude média é de apenas um a dois metros acima do nível do mar, 90% da população vive a menos de cinco quilômetros da costa e metade da infraestrutura está a menos de 500 metros do litoral.
Tuvalu, por exemplo. Recentemente, a Austrália já assinou um acordo para receber os refugiados climáticos do país de de 26 quilômetros quadrados e pouco mais de 11 mil habitantes.
Enquanto isso, o número de turistas no arquipélago praticamente dobrou entre 2016 e 2023.
O paradoxo maior
O paradoxo do turismo de última chance pertence a um paradoxo ainda maior. Responsável por 8,1% das emissões globais de carbono, a indústria do turismo está entre os setores mais poluentes, sobretudo pelos deslocamentos por avião e navio.
Ao mesmo tempo, é um dos mais suscetíveis às mudanças climáticas. Vários destinos já registram alterações importantes nos padrões de viagens.
Na Europa, em busca de neve, os turistas de inverno sobem às estações mais altas. Fugindo do calor escaldante, os viajantes de verão correm para as cidades de clima temperado.
“Houve uma queda de 10% no número de pessoas que planejam visitar o Mediterrâneo, entre junho e novembro de 2023”, lê-se no relatório Rising global temperatures are alredy affecting the toruism Industry — here’s how, do Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês).
Alguns dos hotéis e resorts mais chiques já oferecem as chamadas “nighttime wellness”, experiências de bem-estar realizadas durante a noite, quando o calorão costuma dar uma trégua.
Com os eventos climáticos, cada vez mais extremos, há um movimento global na busca por tornar a atividade turística mais sustentável. No mundo ideal, o turismo de última chance jamais existiria. As viagens seriam sempre rumo aos paraísos na Terra. Sem pressa e sem risco.