Ganhar a vida não foi fácil para o escritor americano George R. R. Martin, de 76 anos. Pelo menos não antes de ele se tornar um fenômeno mundial como autor de romances de “alta fantasia" — sua obra mais famosa As crônicas de gelo e fogo, coleção com cinco volumes, publicados a partir de 1996, foi adaptada para a televisão como Game of Thrones, tida como uma das melhores séries do século 21.
Quase falido, na segunda metade da década de 1980, para sobreviver, foi trabalhar em Hollywood. Atuou como roteirista, supervisor e produtor de TV. Como contaria mais tarde, não foram tempos gratificantes do ponto de vista profissional. Até hoje, a maior parte do que é escrito e produzido nunca chega aos telespectadores — tantas são as alterações na trama para tornar os projetos viáveis.
Martin participou de séries como The Twilight Zone e A Bela e a Fera, mas perdeu a conta de quantas ideias nunca saíram do papel. Uma delas foi encomendado em 1994, pela então 20th Century Fox. Engavetado por mais de 20 anos, o projeto só chegaria ao público americano em 2019 — não como série televisiva, mas só que em formato de quadrinhos. E, agora, a pedidos desesperados dos fãs do escritor, Porto Estelar — Uma graphic novel finalmente chega ao Brasil, pela editora Suma.
O estúdio havia pedido a Martin uma série de ficção científica policial. Ele se inspirou na recém-cancelada Alien Nation. Mas, ao invés de criar um policial com parceiros alienígenas, o escritor compôs uma realidade em que uma confederação formada por 314 espécies extraterrestres chega a Terra e convida a raça humana para se tornar o “sócio” número 315.
A parceria entre humanos e ETs deveria ser de paz, mas algo desanda e bagunça tudo. No momento em que Porto Estelar começa, dez anos se passaram desde a chegada do coletivo interestelar. A relação entre os grupos já está bastante deteriorada.
E piora ainda mais com o assassinato de uma liderança comercial estrangeira. A desconfiança passa a dominar as relações entre os humanos da “Terra-pura” e alienígenas de todos os tipos, raças e mundos.
Gangues se massacram pelas ruas, enquanto a harmonia dos mundos exige uma justiça rápida e certeira. Nesse contexto, um dos protagonistas é o detetive Charlie Baker, recém-promovido ao esquadrão responsável pela segurança do distrito do Espaçoporto. Subordinado à tenente Bobbi Kelleher, ele tem como parceiro o atrapalhado Aaron Stein.
A dupla é designada para desvendar o crime, que não envolve apenas questões políticas e econômicas como põe em risco a frágil e caótica convivência na Terra.
Depois de quatro anos de trabalho e perto de 300 páginas produzidas, segundo a crítica especializada americana, Porto Estelar inaugurou um novo capítulo na carreira de um grande astro da fantasia e da ficção científica.
Marco dos quadrinhos para adultos dos últimos anos, esta ousada graphic novel está no nível da qualidade do trabalho de Martin e consegue inovar em um tema já bastante explorado — a invasão da Terra por alienígenas, que povoa a nossa imaginação desde os tempos da corrida espacial, em um dos momentos mais marcantes da Guerra Fria.
Com um traço maduro e domínio da linguagem das HQs, a ilustradora Raya Golden conseguiu dar vida à peculiar visão de mundo e da humanidade de Martin, a mesma atmosfera que transformou Game of Thrones em fenômeno global.
Faz toda diferença seu traço mais delicado, ao invés de policiais e alienígenas cheios de testosterona e músculos que se vê em quadrinhos desenhados por homens.
Em Porto Estelar, como em seus romances, Martin não está interessado apenas na difícil relação entre humanos e extraterrestres e nas cenas de ação. O autor foca nos dilemas morais de seus personagens.
Na história, as minorais são substituídas por seres nada confiáveis de outros mundos. Os estrangeiros propagam o ódio e a intolerância, além de estimular entre os humanos o surgimento de grupos radicais de extrema-direita — que não hesitam em recorrer à violência, quando se sentem seus privilégios ameaçados.
Não por acaso, Martin frequentemente cita o escritor americano William Faulkner (1897-1962): “O coração humano em conflito consigo mesmo”.
Passados 30 anos, o enredo de Porto Estelar se mostra atualmente ainda mais interessante e reflexivo. Dentro de sua lógica, revela que o mundo e a humanidade pioraram muito desde então.
Vários subtemas de desordem que sustentam seu contexto e atormentam o planeta neste começo de século estão presentes na graphic novel, como as crises de imigração, reações conservadoras e nacionalistas (da chamada “Terra Pura”) e moralismos segregadores fazem a engrenagem funcionar entre os personagens centrais.
Tudo, porém, é temperado por um humor sarcástico e personagens divertidos, que levam a vida como uma grande piada. Essa abordagem dá certa leveza à história. Se Martin e Golden sabem divertir com suas figuras estranhas, também estimulam o leitor refletir sobre o absurdo (ainda mais real) do mundo à sua volta.