Quando se pensava que praticamente nada mais havia a ser dito sobre o exílio de Caetano Veloso em Londres, entre 1969 e 1972 – juntamente com Gilberto Gil –, chega às livrarias It's a long way: O exílio em Caetano Veloso (Editora Garota FM Books, 212 páginas), da musicóloga Márcia Fráguas.

O compositor e cantor tinha tratado do assunto com profundida na sua autobiografia Verdade Tropical e no documentário Narciso em Férias (2000), de Renato Terra e Ricardo Calil, com foco em sua prisão e nos tempos em que ficou na cadeia, sem culpa formada.

Para situar aqui o leitor, no final de dezembro de 1968, os compositores baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos pelo regime militar, poucos dias depois da decretação do Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968.

Eles foram considerados inimigos do governo – como centenas de outras pessoas naquele momento e permaneceram 54 dias encarcerados e mais quatro meses de confinamento domiciliar obrigatório em Salvador, na Bahia. Até que foram exilados do Brasil, em julho de 1969. Só retornaram ao País no início de 1972.

Em um trabalho rigoroso de análise e pesquisa, que inclui uma entrevista com o próprio Caetano, a autora mostra o impacto dessas prisões na continuidade no movimento tropicalista, que revolucionou a MPB entre 1967 e 1968, liderado por Caetano e Gil, com ênfase no modo como as perseguições contra eles interromperam esse processo. Mas não o aniquilou.

Os reflexos desses acontecimentos são revelados a partir da leitura das canções que compõem os três discos realizados por ele entre a prisão e o retorno ao Brasil – Caetano Veloso (1969), Caetano Veloso (1971) e Transa (1972) – os dois últimos foram compostos e gravados em Londres.

Com isso, explica ela, seu livro busca evidenciar e interpretar a construção de uma poética do exílio.

Na entrevista para o NeoFeed a seguir, Márcia Fráguas dá detalhes de sua pesquisa e às interessantes conclusões que tirou:

Caetano Veloso falou bastante nos últimos 30 anos de seu exílio em livros, documentários e entrevistas. O que faltava ser dito que motivou sua dissertação?
Na verdade, quando decidi escrever a dissertação, em 2016, ele não tinha falado tanto assim, não. Havia o relato em Verdade Tropical, de 1997, e algumas menções ao exílio durante a turnê do disco Circuladô Vivo, em 1992. Foi justamente por uma lacuna de estudos de maior fôlego sobre o assunto, aliada ao crescimento da direita no Brasil e seu revisionismo histórico, que nega as violências perpetradas pela ditadura militar, que me levaram a querer pesquisar o assunto. E foi justamente no período da pandemia, quando eu estava escrevendo minha dissertação de mestrado, que Caetano passou a falar mais sobre o assunto, com o lançamento do documentário e da separata Narciso em Férias. O contexto era propício para isso.

caetano veloso livro
"It’s a Long Way – O exílio em Caetano Veloso", da editora Garota FM Books. Preço sugerido: R$ 79

Você foca em três discos para falar do exílio de Caetano. Como chegou a essa conclusão de que eram mais representativos da influência dessa experiência na criação musical dele?
Os discos estudados foram produzidos em situação de prisão domiciliar (o de 1969) e os outros dois (1971 e Transa) no exílio londrino. Achei interessante pesquisar esses álbuns justamente por seu contexto de produção: Caetano Veloso como preso político pela ditadura e em seguida, como exilado político.

O exílio faz ecos em outros discos também nos anos seguintes?
Em Araçá Azul, de 1973, já de volta do exílio, Caetano aprofunda experiências formais com o som e a voz que haviam sido iniciadas no disco de 1971, o primeiro gravado no exílio, como podemos perceber em canções como Maria Bethânia e na versão de Asa Branca. Há também o diálogo com os Beatles, presentes em referências nos discos do exílio, mas que aparecem posteriormente na obra do compositor, tanto em regravações, sendo a mais recente, de Hey Jude, como na capa do disco Qualquer Coisa (1975).

A gente sente que aquela experiência ainda mexe com Caetano até hoje. Isso é algo que ainda reflete em suas ideias, pensamentos e criações? Um trauma sem fim?
Caetano, citando o artista visual Rogério (Duarte), observou mais de uma vez que, quando a gente é preso, é preso para sempre. Contudo, acho que a disposição em se opor com sua arte a toda forma de autoritarismo talvez seja o traço mais forte que tenha ficado como saldo dessa experiência de ter sido alvo da violência de Estado.

Você conversou com ele, com perguntas bem fundamentadas. O que lhe pareceu importante questionar sobre aquele período?
Pareceu-me que seria interessante conversar sobre seu processo de composição em inglês, bem como em relação a aspectos de sua vida no exílio. Ele teceu comentários muito ricos sobre a experiência de estar apartado da língua portuguesa e também de encontros artísticos que viveu no exílio, como a visita que fez à artista visual Lygia Clark, em Paris, ou ainda a de participar de um happening no Festival da Ilha de Wight, em 1970, na mesma edição em que se apresentaram Miles Davis e Jimi Hendrix.

Algo que Caetano disse surpreendeu em relação às experiências vividas por ele ou sobre a concepção dos discos que você estudou?
É sempre surpreendente ouvir um artista, um criador, falar sobre o processo e o contexto de criação de suas obras, ainda mais um momento tão específico como esse de sua prisão e posterior exílio.

Marcia Fraguas escritora
A musicóloga Márcia Fráguas

O que seu estudo contribui para a compreensão da rica obra de Caetano Veloso?
Procurei demonstrar que há na experiência individual de Caetano uma dimensão que é também coletiva, uma vez que a ditadura afetou a vida e os rumos do país como um todo, durou 21 anos e seu fantasma ainda continua nos rondando. Nesse sentido, estudar a obra dele produzida nesse contexto adverso que foi vivido por ele é também compreender a história recente do nosso país, cujo rescaldo continua bastante vivo entre nós.

Você acha que faltou sensibilidade, boa vontade ou mesmo competência da crítica na época para perceber o impacto do exílio nesses discos de Caetano?
Não era de conhecimento geral que Caetano Veloso e Gilberto Gil haviam sido exilados pela ditadura militar. Para a maioria das pessoas, os compositores tinham ido viver em Londres por escolha própria. Havia por parte do regime o desejo de “produção de normalidade” como se nenhuma irregularidade estivesse sendo cometida pelo Estado. Foi por esse motivo que os compositores, ao serem liberados da prisão no quartel, foram proibidos de divulgarem sua imagem, afinal, a ditadura não queria que o público tivesse conhecimento da magreza, do abatimento físico e dos cabelos cortados na prisão.

É possível apontar o que buscava Caetano com esses discos, feitos em um momento de ruptura em sua vida pessoal? Uma resposta ao que passou? Uma terapia?
Caetano Veloso é, antes de tudo, um artista, e como tal, seguiu fazendo o que grandes artistas fazem: criam, mesmo nos contextos mais distintos e adversos. O resto é consequência desse gesto artístico.

O exílio mudou o rumo da carreira de Caetano? Você chegou a alguma conclusão nesse sentido?
Caetano disse publicamente que tinha o desejo de gravar um disco experimental antes da prisão e que o exílio mudou tudo. Nesse sentido, Araçá Azul seria a realização tardia desse desejo. Além disso, foi no exílio que ele passou a gravar seu próprio violão nos discos, e essa é, segundo ele, a maior contribuição do exílio a sua carreira. É certo que a experiência de compor e se apresentar em outra língua, de passar a cantar acompanhado do próprio violão, e te ter vivido na Londres dos Beatles, Jimi Hendrix, Rolling Stones, a chamada “Swinging London”, contribuíram para o amadurecimento do artista como compositor e performer.

 Seu livro permite que se redescubra ou se entenda melhor esses álbuns?
Acredito que sim. O esforço de análise dos discos vai nesse sentido: reapresentar ao público geral discos que já são muito amados por quem gosta de música popular.