Um bom livro deve ter um início arrebatador, capaz de aprisionar o leitor para sempre — isto é, até o ponto final. É o que faz o radialista e assessor de imprensa Elliot Mintz em John, Yoko e eu — Um retrato íntimo e revelador do casal mais célebre do planeta, que a Editora Sextante está lançando no Brasil.
O autor começa pelo momento em que atende ao pedido da viúva Yoko Ono para que faça o inventário do marido, dois meses depois de o ex-Beatle John Lennon ter sido assassinado por fã lunático, no dia 8 de dezembro de 1980, na porta do prédio onde a família morava, o lendário Edifício Dakota — personagem, aliás, importante neste comovente livro de memórias.
A obra não tem qualquer propósito de contar fofoca. Traz, sim, o relato intenso, emotivo e revelador da amizade íntima que o autor manteve por nove anos, de 1971 a 1980, com o casal. Bem escrito e carregado de observações sensíveis, Mintz ficou encarregado de levantar tudo que estava guardado em caixas no porão do Dakota, onde Lennon e Yoko tinham nada menos do que cinco apartamentos.
No primeiro momento, compraram o de número 72, onde passaram a morar com o filho Sean. Depois, adquiriram outros imóveis adjacentes ao longo dos anos, em parte para garantir privacidade e também para acomodar assistentes, visitas e um estúdio de gravação pessoal. Após a morte do astro, Yoko continuou a viver no Dakota por décadas e manteve os apartamentos —transformou alguns em depósitos de arte e arquivos.
Na arrumação, o ponto de partida de Mintz foi contar a quantidade de pares de óculos exatamente iguais do amigo morto, porém em cores diferentes. “Este é o 26° par de John que examino nesta noite de neve. São antigos, feitos de fio de aço e perfeitamente redondos. Algumas pessoas os apelidavam de ‘óculos de vovó’, embora estes sejam da marca Panto 45, produzidos originalmente por uma antiga fábrica inglesa chamada Algha Works”, escreve Mintz.
Ele não se sentia à vontade para colocá-los — de alguma forma, não lhe pareceria adequado fazer algo tão íntimo e pessoal: “Então, em vez disso, seguro-os na altura dos olhos e espio pelas lentes. Mesmo sem deslizá-los até o topo do nariz, os óculos me dizem algo sobre a maneira como John Lennon enxergava o mundo, algo sobre o qual eu não pensei muito enquanto ele era vivo.”
O jovem prodígio, que superou a gagueira e se tornou radialista "especializado em celebridades", tinha 21 anos, quando conheceu Lennon em 1971, em Los Angeles, após uma entrevista que fez com Yoko para a rádio. No livro, ele define o encontro como o momento mais importante de sua vida. Depois da conversa, ela o apresentou a Lennon, e os três rapidamente estabeleceram uma relação de confiança e amizade.
Mintz nasceu em Nova York, mas se mudou adolescente para Los Angeles, onde se apaixonou pelo mundo das rádios e aprimorou seu talento de entrevistador. Foi DJ e apresentador de TV. Mais tarde, tornou-se consultor de mídia e trabalhou com Bob Dylan, Diana Ross, Paris Hilton e outros. Até aposentar-se, em 2014, entrevistou cerca de 5 mil pessoas.
Nenhuma experiência, porém, foi tão importante e intensa quanto a amizade com Lennon e Yoko. Não quer dizer que não tivesse altos e baixos. “A língua inglesa contém cerca de 170 mil palavras, e, mesmo assim, nunca encontrei uma única que descrevesse com precisão os pormenores estranhos e as nuances bizarras que marcaram meu relacionamento com John e Yoko”, escreve ele.
De confidente a babá
O radialista desempenhou o que chama de “vários papéis nos dramas por vezes intrigantes, por vezes enlouquecedores, mas sempre complexos, que ambos criavam para nós três. Eu era um confidente discreto, um quebra-galho, um assessor de imprensa (embora nunca tenha sido oficialmente contratado por nenhum dos dois, mesmo depois da morte de John), um investigador, um ouvinte”.
Fez também o papel de companheiro de viagem, confidente, elo com o mundo exterior, babá (“não para Sean, o filho pequeno deles, mas para John, que parecia precisar também”) e, acima de tudo, alguém sempre disponível para falar ao telefone e que passou literalmente centenas de horas com eles em épicas chamadas de longa distância que chegavam a durar sete horas.
A morte era um dos temas mais recorrentes nas conversas entre Mintz e o músico. O fim da vida não assustava Lennon. Para ele, era algo natural, ideia compartilhada por Yoko – que se acirrou ainda mais depois do assassinato do marido.
Mintz os amava como se fossem da sua família. “Eles também me viam dessa forma – espero que sim –, mas, de novo, nunca tive certeza do que sentiam de verdade. Só sabia que, quando eles me ligavam, o que faziam com frequência, eu me sentia na obrigação de atender. Nos anos que passamos juntos, ninguém falou com eles mais do que eu”, afirma.
Mesmo assim, o radialista nunca saberá ao certo por que o procuravam tanto: “Mas sempre dei o meu melhor para ser um amigo de verdade. Até nos momentos mais desafiadores, eu estava presente para ambos, me recusando a tomar partido e dizendo verdades que talvez fossem difíceis de ouvir. Eles confiavam em mim e eu confiava neles, em um relacionamento e um compromisso quase sempre preenchidos com alegria”.
Nos últimos meses antes do assassinato de Lennon, porém, esses contatos tinham se tornado algo opressivo devido à intensa dependência emocional e à constante necessidade de atenção por parte de Lennon e Yoko. A ponto de Mintz instalar uma linha telefônica adicional em sua casa para atender prontamente às ligações do casal, que frequentemente ocorriam no meio da noite.
Não raro, foi convocado para tarefas pessoais ou para mediar conflitos entre os dois. Sem se furtar a revelar a relação sombria de Lennon com drogas e álcool, o autor testemunhou momentos felizes e de desavenças que por pouco não separaram o casal.
Acima de tudo, ele se encantou pela espontaneidade dos dois: “Pareciam ter uma fé inabalável, quase infantil, na perspectiva de um mundo melhor. Acreditavam que, para que a humanidade vivesse com harmonia e amor, bastava algumas pessoas imaginarem que isso era possível”.
No entanto, ao se tornar amigo do casal em carne e osso, começou a enxergar também o lado humano deles, com seus defeitos. Escreve ele: “Podiam ser incrivelmente sensíveis, francos, provocadores, atenciosos, criativos, generosos e sábios. Mas também podiam ser autocentrados, ansiosos, fúteis, mesquinhos e irritantes. No caso de John, até mesmo cruel... inclusive com Yoko”, diz.
Em 1972, durante uma festa, enquanto todos acompanhavam a apuração da eleição presidencial americana, John Lennon, que estava bastante embriagado, teve um envolvimento sexual com uma mulher em um dos quartos da casa. Yoko Ono, que estava na sala com os outros convidados, podia ouvir o que acontecia lá em cima. A situação deixou todos visivelmente desconfortáveis.